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Modalidade: desfrute


Antes de sair e voar, surfar, escalar, pular, aplicar-se de alguma maneira no risco do espaço, na graça pura do corpo, vocês não sabem. Não têm o direito de falar.

São escravos das suas ideias e das suas hierarquias e assim não conseguem enxergar que não há objetivo mais elevado do que este, o propósito último da existência, do próprio cosmo: a brincadeira livre de  voar.

(Kim Stanley Robinson, Blue Mars)

Numa de suas conhecidas palestras, Ariano Suassuna relatou o estranhamento ao ouvir alguém explicar, em outro evento, que “o teatro surgiu na Grécia”. No tom irresistível de suas melhores tiradas, comentou “ora, o teatro grego surgiu na Grécia, sim!”

A máxima de que “a democracia surgiu na Grécia” poderia também ser aperfeiçoada pelo adjetivo gentílico se ouvida por algum antigo hindu, iroquois ou tupi no sentido de poder exercido a partir da escolha popular. Já outra ideia grega, a das olimpíadas, tomou recentemente uma dimensão tão universal e mais ampla do que as competições intertribais (promovidas mundo afora desde sempre), que, neste caso, a indução eurocêntrica não seria exagerada. 

"Também nem queria, acho Paris cafona mesmo..."

Além da adesão global, as olimpíadas modernas diferem das antigas pelo seguinte: se, na antiguidade, ir competir em Olímpia era a oportunidade de trucidar simbolicamente a cidade adversária ou se provar mais forte e ligeiro que o inimigo, na versão moderna o pior castigo é não comparecer - “melar o jogo”, se dizia antigamente. O que um pentatleta peladão coríntio certamente acharia muito frouxo.

Os donos da tocha, aliás, em lugar de receber os inimigos para subjugá-los no ginásio e hastear mais alto as próprias bandeiras, têm punido quem não gostam com desconvites seletivos, o que algum pugilista cipriota teria descrito, alguns milênios atrás, como “amarelar”. Para nossa sorte, erradicar os palestinos não fere o espírito olímpico e pudemos ver a israelense Anat Lelior “arrepiar” nas oitavas de final do surfe em 2024.

Mas Pierre de Coubertin, o entusiasta que quis reviver os jogos na modernidade, tentou preservar algo essencial das competições clássicas: o dinheiro não poderia estar envolvido. Quem recebia para praticar sua modalidade não participaria das olimpíadas. Como nos jogos pan-helênicos, todos deveriam motivar-se pela superação e pela pureza da justa disputa entre iguais. Já competir vestido estava liberado desde 1896, pelos registros.

A proibição ao amadorismo seguiu inabalável até a década de 1980, mas sobreveio outra inovação que mudaria tudo: os comunistas jogaram por terra a noção de esporte remunerado e, com métodos e motivos escusos, passaram a aplicar sucessivas e humilhantes sovas aos patrões da humanidade nos quadros de medalhas, inclusive depois da queda do muro de Berlim, em 1992.

África do Sul: mais de 30 anos de boicote. Patrão: apartheid liberado

A partir de Barcelona, os profissionais foram autorizados a competir e as olimpíadas tornaram-se um fenômeno midiático ainda maior: as celebridades do esporte, a exemplo do “dream team” americano do basquete, estariam todas lá. É uma guinada que remete ao dilema do subsídio político na república romana: era fácil para o patrício ir à praça todos os dias discutir os rumos do país enquanto uma porção de escravos colhia o sorgo e ordenhava as cabras, coisa já não tão simples para o plebeu modesto. O subsídio (tornado carreira profissional no Brasil, com controle de ponto, 13º e tudo) veio para deixar o “jogo” mais nivelado.

Glória: a poção do Druida passou no antidoping

É uma dicotomia que persiste: há jovens atletas olímpicos que dedicaram a vida às suas modalidades, são dependentes de patrocínios e bolsas e têm na competição não uma pausa lúdica de suas vidas variadas mas o ponto definitivo de sua própria existência, caso de vida ou morte. Já para alguns cavaleiros, por exemplo, a competição pode ser um projeto colateral, algo a que se dedicam parcial e esporadicamente.  

Provocariam um colapso ético em Pierre de Coubertin pesquisas recentes que apontam que o amadorismo na Grécia antiga é uma lenda, incluindo registros de somas fabulosas outorgadas a alguns campeões e suspeitas de que a longa hegemonia da cidade de Croton na corrida, por exemplo, foi sustentada pela contratação sistemática dos melhores atletas. 

Tênis à moda maia

Há em torno de tudo isso talvez um paradoxo que precede a polêmica do amadorismo versus profissionalismo: o mesmo mundo que aparentemente se rendeu a um consenso em torno do liberalismo econômico, que pressupõe a livre concorrência e, mais recentemente, a mítica “meritocracia”, a cada quatro anos para o que está fazendo para acompanhar as competições olímpicas, em sua maioria disputadas por atletas que dependem de bolsas, subsídios e incentivos. A guerra fria acabou e os russos foram na prática expulsos do ginásio mas as medalhas olímpicas permanecem entre as raras glórias de apelo planetário. 

Pode ser que, assim como Suassuna lembrou quanto às expressões cênicas, os esportes competitivos sejam indissociáveis da condição humana, um fenômeno ecologicamente inexplicável mas universalmente fundamental. Se é simples retraçar a origem “pragmática” de celebrar e incentivar algumas modalidades como a corrida, o remo, o arco e flecha, as lutas e a montaria, relacionadas a atividades fundamentais, a exemplo da caça, da pesca e da guerra, é provável que a representação de mitos fundadores ou reencenações de momentos críticos e catastróficos da história de nossos ancestrais tenha se valido de esquetes e de pinturas parietais que reforçavam as narrativas orais antes do desenvolvimento da escrita.

🙅🏽‍♂️

Diz-se que os polinésios, sem dispor de mapas que registrassem seu conhecimento de astronomia náutica, desenvolveram longos poemas rimados, com catálogos de posições e sentidos das estrelas, aos quais recorriam em suas impressionantes travessias pelo Pacífico. De algo assim pode ter surgido a música, misteriosa e a rigor “inútil” mas aparentemente favorecida por um conduíte direto para o espírito de cada humano que já viveu.

Também desafiam a “meritocracia” darwiniana muitos esportes por equipe, em boa parte criados em contextos elitizados; quase todos os livros de poemas já criados e a maioria das óperas que já foram para o palco. Ainda assim, muitas pequenas cidades mundo afora erguem estátuas para seus poetas e, um pouco como as façanhas espaciais motivadas pela prolífica guerra fria, muitas nações e cidades construíram, para dar a medida de sua glória e pujança, grandes teatros perfeitos para a ópera e o balé clássico, formas de expressão efetivamente apreciadas por pouquíssimos.

💪🏽💪🏻

Se a maratona celebra um dos trunfos físicos da nossa raça - a capacidade de correr, inclusive sob o sol, distâncias impensáveis para outros predadores e, ao mesmo tempo, preservar uma temperatura corporal saudável - a ginástica rítmica e os saltos ornamentais talvez estejam para os esportes como a poesia concreta e os desfiles da Sapucaí para a manifestação artística. Exemplos de que "mérito" e "retorno sobre o investimento" não só não são tudo como, historicamente, temos custeado e celebrado, sem constrangimento, atividades inutilmente belas.

O proverbial alpinista, perguntado, disse que escalaria a montanha "porque ela existe". John Kennedy decidiu levar (e trazer) homens à Lua em menos de oito anos (e o fez) "porque era difícil". Nós erigimos templos rebuscados para as artes mais sutis e organizamos jogos olímpicos grandiosos porque podemos.

Meses atrás, tentando flagrar um pôr-do-sol sobre o mar, avistei sem querer várias pessoas manuseando um equipamento simples mas de ar futurista para praticar o que parecia o esporte mais delicioso da Terra: sem nunca ter ouvido falar antes, descobri, encantado, o wing surfing.

🪁

As asas cavadas das grandes pipas-velas me remeteram às cenas de Marte Azul em que, valendo-se da gravidade suave, da atmosfera mais fina do planeta (terraformado) e, principalmente, dos enormes avanços em mecatrônica, cibernética e inteligência artificial, humanos alienígenas deleitavam-se pelos penhascos marcianos:

Ao subir, Nirgal viu que a maioria dos que voavam portavam trajes aviários de um tipo ou de outro, era como se tivesse se juntado a uma revoada de grandes criaturas aladas que pareciam não pássaros mas raposas voadoras ou alguma ave mítica como o grifo ou o Pégaso: homens-aves. Os trajes eram de diferentes estilos e imitavam em alguns aspectos os traços de diferentes espécies: albatroz, águia, andorinhão, abutre-barbudo. Cada traje envolvia o seu piloto no que era de fato um exoesqueleto mutante, que respondia à pressão interna exercida pelo usuário de modo a assumir e reter posições ou fazer determinados movimentos, sempre potencializados em relação à pressão exercida de dentro, de maneira que músculos humanos conseguiam bater as grandes asas ou mantê-las firmes contra a enorme força das arremetidas de vento, ao mesmo tempo em que sustentavam os capacetes e caudas aerodinâmicos nas posições certas. Inteligências artificiais embarcadas nos trajes prestavam ajuda aos pilotos que queriam e podiam até funcionar como pilotos automáticos, mas a maioria preferia fazer tudo sozinha e manipulava o equipamento como um braço robótico, que multiplicava a força de sua musculatura.

🌊

Na monumental trilogia marciana, aliás, Kim Stanley Robinson passa a limpo boa parte das disciplinas do conhecimento humano ao descrever o comportamento de pessoas num contexto tabula rasa. Se, no início, instaurar condições mínimas de existência no solo de Marte impõe uma disciplina profundamente pragmática, séculos depois acompanhamos os que, com naturalidade, desfrutam sem culpa do trabalho realizado anteriormente e se deliciam em atividades “inúteis” como navegar a passeio e observar a curvatura mais abrupta do pequeno planeta ou voar “batendo asas” por pura diversão.

🧘🏻‍♂️

Vai ver daqui a algum tempo essa aparente incongruência fique mais evidente, talvez a conversa mude de debates sobre a justiça transcendente de viver à míngua por não ter aprendido a se tornar o profissional do futuro para observações sobre como é festivo gastar montanhas de dinheiro com olimpíadas e carnavais, acertado erguer estátuas para compositores e monumentos à ópera e não a “CEOs” nem coaches do sucesso.


Parece que ainda vou ter tempo e disposição para experimentar o wing surfing ao pôr-do-sol,  e a inclusão do kite surfing - que não imita nenhuma ocupação prática nem faz girar milhões em campeonatos - nas Olimpíadas de 2024 me dá esperança de que me chegue vida também para ver as pessoas migrarem da corrida maluca do comprismo e do corporativismo para, à moda dos marcianos do Kim Stanley Robinson, aprenderem a se valer da consolidação pós-tecnológica e da sustentabilidade dos biomas para enfim se entregarem à fruição solta do planeta como finalidade última e cronópia, fazendo dele ora um parque olímpico global, ora uma pradaria do país dos hobbits.

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