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O cabra ainda está aqui?

Levántate y mírate las manos
Para crecer, estréchala a tu hermano
Juntos iremos unidos en la sangre
Hoy es el tiempo que puede ser mañana
 
(Victor Jara, 'Plegaria a un labrador')
 

Era ainda na época da TV a cabo que assisti e fiquei fascinado por Edifício Master. Faz tanto tempo que, ao ouvir falar de Cabra marcado para morrer (resgatado por ocasião do aniversário de 60 anos do último golpe militar logrado), demorei a associar o nome do diretor.

Ao assistir a Cabra…, porém, os paralelos que surgiram não tinham a ver com o outro documentário de Eduardo Coutinho e sim com o bem mais recente Ainda estou aqui e as reflexões sobre a obstinação golpista dos militares brasileiros, recentemente confirmada em alta definição

Ligas camponesas

Com relatos de primeira mão e provas materiais da truculência paranoica pós-1º de abril, Cabra… é de certa maneira uma contraparte rural do relato de Marcelo Rubens Paiva. Em lugar da constância narrativa deste, porém, o documentário contém um filme dentro de outro: o projeto de reconstituição cinematográfica da então recente execução do líder camponês João Pedro Teixeira foi desmantelado, a 35 dias de filmagens, por pelotões das forças golpistas ainda em abril de 1964.

O filme original, rodado pouco mais de um ano após os fatos, contava com muitos dos envolvidos atuando como si mesmos, em locações muito próximas ao ocorrido, algo que lembra A batalha de Argel, sobre a revolta que culminou na independência da Argélia (por coincidência a se consumar também em 62, poucos meses após o assassinato de João Pedro Teixeira).

A partir de pedaços do filme confiscados, perdidos, escondidos e recuperados, Coutinho e sua equipe retornam, vinte anos depois, aos locais e aos personagens do filme interrompido. A obra acaba por conformar-se então em camadas ou como uma boneca russa: o parco material semifictício original é reapresentado em seus cenários, o reencontro inesperado da equipe com os atores é registrado, colhem-se depoimentos dos desdobramentos do ataque militar – já que Coutinho e equipe precisaram fugir – e o diretor vai ainda além ao procurar, em diferentes estados e até em Cuba, participantes e seus descendentes.

"Dono de terra nunca morre. Só quem morre é camponês!"

Muito diferente de um antropólogo moderno, por exemplo, Eduardo Coutinho interferiu direta e dramaticamente nos ambientes do filme. Os camponeses que participavam do projeto em 1964 foram encurralados pelos golpistas, acusados de articular revolução com os cubanos e soviéticos e pressionados a denunciar outros supostos participantes.

A principal intervenção, porém, tem relação com Elizabeth Teixeira, viúva do líder assassinado em 1962: com a instauração do regime de exceção, ela muda de nome, corta contatos com a família e conhecidos, vive praticamente escondida e sob identidade inventada até que o diretor a encontra, toma seus depoimentos e a ajuda a restabelecer contato com os filhos.

Nas capturas da década de 60, Elizabeth, embora ostente alguns dos traços físicos comumente associados às classes populares do Nordeste, aparece como figura meio feérica, muito pálida e com um corte de cabelo incomum para a época e região.

Combates

Se João Pedro seria o protagonista do filme original, no último é certamente Elizabeth que dá o fio da meada. Ressabiada no primeiro contato em razão da presença de seu filho (aparentemente bêbado) Abrahão, ela tece elogios a João Figueiredo, chefe golpista da hora, e agradece a suposta generosidade de conceder “abertura política”.

Outros entrevistados, muitos apresentados pela narração de ninguém menos do que Ferreira Gullar, exibem, nas entrevistas informais, um claro receio de serem associados ao movimento camponês, à realização do filme ou até à atividade política, indicativo de que, apesar da lei de anistia e da tal “abertura política”, o medo da repressão golpista ainda paira no ar.

Sotaque suspeito

Nem todos, porém, são tão ressabiados. João José, filho de um dos líderes camponeses, conta como foi interrogado pelos golpistas em razão da participação de seu pai no filme. Narra como peitou os chimpanzés fardados para manter seus livros, inclusive Kaputt, de Curzio Malaparte. Lendo o prefácio com dificuldade, prova que entendeu o estratagema de despistagem dos milicianos da SS combinado entre o autor e um camponês, que tossia da horta ao avistá-los para que Curzio escondesse o manuscrito. E percebe o paralelo da cena com o que os próprios realizadores de Cabra... fizeram com o equipamento de filmagem escondido em 64, pertinho de onde mora até hoje.

João José, sozinho no meio do descampado, num casebre de barro, cercado por milicianos da ditadura que poderiam fazê-lo desaparecer (sem consequências) em poucos minutos, se vale da presença de espírito e do humor para explicar que a equipe de produção falava um pouco diferente, sim, mas com sotaque do Rio de Janeiro, não de Cuba, resposta que o uniformizado procurava. Lembra algum personagem esperto de Ariano Suassuna.

Como despistar milicianos

Numa passagem mais tensa do encontro, quando é acusado de revolucionário à cubana, dá uma lição de direitos civis ao miliciano: “não tem nada de cubano revolucionário aqui, seu capitão. Aqui tem gente que precisa de liberdade para plantar, comida e remédio”.

João Virgínio, outro líder camponês, preso e torturado por anos, tampouco tem receio de denunciar a violência sofrida e, mesmo muito tempo depois, num linguajar extremamente canhestro, sintetiza com lucidez seu pesar pelo povo não saber do poder que detém. Suscita a fé como imperativo moral que toca a todos que ainda não desistiram e prevê as bênçãos de Deus, apesar de sua trajetória tortuosa.

Líbranos de aquel que nos domina en la miseria / Tráenos tu reino de justicia e igualdad (V. Jara)

Paralelamente se demonstra como a máquina de mentira do regime autoritário, ilustrada com recortes de jornais da época, já abusava dos métodos de que se vale até hoje: slogans com termos como “Deus” e “liberdade”, acusações de intervenção soviética e cubana, imputações de comunismo a todos que fossem pobres, camponeses e reivindicadores.

Uma passagem é particularmente esdrúxula: a vandalização do casebre de João José e seu pai, com a destruição de um caldeirão de mandioca em cozimento e de um saco de farinha é noticiada como “apreensão de complexo equipamento subversivo numa célula comunista”.

A penúltima tomada de Cabra… é talvez a mais significativa: apesar da boa “atuação” de Elizabeth ao tecer loas ao general da vez, aquela docilidade não se integra com o restante de seu discurso, diluído ao longo do filme. Quando a equipe está prestes a partir, já embarcada na kombi, ela talvez não perceba a câmera ainda ligada atrás do ombro de Coutinho e, adotando a expressão urgente dos injustiçados, vocifera: “que democracia é essa que estão falando? Sem liberdade, com salário de miséria, com fome? Outro dia fui tentar botar um aluno numa escola e cobraram uma matrícula que ninguém consegue pagar! O pobre, o filho do operário, não tem como estudar!”

"Em off": viva a revolta camponesa!

É precioso o registro de uma indignação de lucidez cristalina, e que sintetiza o espírito que culminou na Constituição de 1988. Elizabeth é uma camarada de formação clássica, consciente, ao sentenciar que enquanto houver miséria é preciso haver reivindicação. 

Na última tomada, João José, João Virgínio, outros adultos e crianças da região de Galileia brincam um carnaval com maracatu. O regozijo que suas expressões exalam parece ser proporcional aos reveses indizíveis que o mero acaso de terem nascido pobres e periféricos no Brasil impôs a eles.

Essas pessoas, como ensinam Lélia González e Luiz Antônio Simas, entre outros, parecem viver a tradição multicentenária da festa como ato de resistência que a sua classe desenvolveu à sombra da brutalidade colonial.

Os cabras retratados por Eduardo Coutinho, aliás, emanam todos uma vibração peculiar, um encontro da doutrina social-democrática europeia com o irredentismo histórico das massas populares do Nordeste do Brasil que dá em algo de uma força inquebrantável.

👀

Com os créditos do filme rodando, voltei a pensar em "Ainda estou aqui" e no debate atual em torno das questões que os filmes tratam. E experimentei uma espécie de nostalgia pelo século XX: um tempo em que os despossuídos tiveram a oportunidade de tomar consciência (às vezes inspirados por elaborações literárias como "Kaputt"), se articular, reivindicar e ampliar direitos, fazendo avançar a causa de sua dignidade.

Comparo, espantado, os primórdios da reforma agrária dos anos 60 e a cocção da Constituição Cidadã dos anos 80 com os fenômenos de hoje: os desgraçados contemporâneos – choferes  de praça, entregadores de pizza, manicures e diaristas – gritam contra o “peso do Estado nas costas”, abilolados por fabricações de WhatsApp, e se enunciam tão empresários quanto Elon Musk. Os funcionários de escritório dividem o mundo entre vencedores e preguiçosos até quando é a segunda categoria que sobra para eles. 

Sobreviver, a grande vingança

Empresários apoiam golpe militar ostensivamente, o Congresso volta a discutir anistia para golpistas e a combalida Justiça do Trabalho esperneia pela primazia da realidade perante um STF caricaturalmente vaidoso que insiste na premissa pós-factual de que o que se chamava de “empregado” desde a revolução industrial transfigurou-se agora em outra coisa.   

Suspeito que, ainda combativa e perigosa, Elizabeth Teixeira, que agora resolveu subverter a morte, também se pergunte, olhando para esses discursos alucinados, do alto de seus cem anos, se por acaso cabras como seu marido ainda estão entre nós. 

"Elemento subversivo"

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