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Sidarta e o Capitão

Acabo de assistir a Capitão Fantástico, um filme interessantíssimo que, como todas as histórias que exploram a vida nos limites da sociedade urbana, me deu o que pensar. Pouco depois, conversei com alguém que, um pouco como eu há muitos anos, tomou contato com o meio corporativo-glamouroso por meio de um estágio.

 
Ouvindo as descrições sobre o ambiente jet set, de coquetéis, meios ilimitados e mimos do escritório, lembrei-me de como o breve contato com advogados de renome, causas de valores altos e contratos importantes me provocaram certa empolgação quando universitário. No meu caso, porém, o efeito logo se esvaiu, e o comportamento das pessoas que se identificam de verdade com tudo aquilo se tornou ridículo aos meus olhos.

Assim como essa colega, eu poderia ter explorado a senda do profissional do futuro, me mudado para São Paulo para trabalhar cada vez mais horas e vestir roupas cada vez mais sofisticadas. Passar cada vez menos tempo fora da firma e receber fortunas cada vez maiores. Bastou olhar aquela carreira da soleira da porta, porém, para perceber que eu não ia querer segui-la.

[Aviso: fala-se sobre o enredo do filme e do livro]

O protagonista de Capitão Fantástico, ao que parece, não queria correr o risco de que seus filhos fizessem escolha diferente da minha. Preventivamente, forma-os à parte da “frivolidade” da sociedade urbana, do consumo competitivo, da preguiça e do desleixo físico, da alienação do mundo natural e das habilidades básicas da vida. No mato.

A certa altura, porém, quando a família é obrigada a fazer uma imersão no mundo contemporâneo, uma das crianças resolve aderir à rotina de conforto e previsibilidade de uma casa moderna e próspera.

A capitulação do garoto não dura mais do que um par de dias, contudo, e o pai leva todos de volta para retomar a vida de frugalidade silvestre e autonomia de antes, provavelmente enriquecida pela experiência de haver visto e experimentado “o outro lado”. Um pouco como a criança autorizada a fazer algo com que cismou porque o pai sabe que a proibição só faria atrasar a superação.

Veio à mente então Sidarta, o romance de Herman Hesse que sintetiza provavelmente todas as reflexões dessa espécie. Registro, de passagem, a possível perfeição literária desse texto, talvez a única narrativa mais longa de que eu tenha notícia cujo acabamento é tão justo quanto o de contos sem uma palavra a mais nem a menos (como são alguns do Cortázar). 

Numa história ao mesmo tempo circular e pendular, Sidarta se afasta de preocupações mundanas, busca ensinamentos, líderes e respostas. Toma a estrada dos excessos mundanos, percebe a vacuidade das lições alheias, enxerga a infantilidade do amor. Encontra respostas, percebe a inutilidade das respostas e ideias, conhece a importância do amor. Por fim, entre outros episódios, descobre a divindade em todas as coisas e pessoas. 

Numa só vida, Sidarta põe à prova o ascetismo ao estilo de São Tomás e o caminho do excesso (que Santo Agostinho também experimentou), transcende o Buda e alcança a plenitude à sua própria forma.

Perfeição.

Sem me identificar com os extremos de Sidarta e do Capitão Fantástico, simpatizo com Rellian, o garoto do filme, em seu método. Experimentei um pouco dos baratos rasteiros do consumo e da admiração alheia, de coisas que desengatilham o famoso mecanismo evolucionário de recompensa. Que dura, aliás, entre segundos e dias. 

Ultimamente, porém, tenho experimentado um tipo de satisfação diferente, vinda da simplificação e da otimização. Depois de muito adiar a reposição de um aparelho ou produto, acontece de perceber que ele na verdade não faz muita falta, por exemplo. Encerrar um serviço de filmes sob demanda, para muito além do dinheiro economizado, às vezes tira de uma gaveta mental uma lista de títulos que crescia muito mais rápido do que eu poderia assistir. Contratar planos mais simples (e que oferecem a mesma coisa) e usar aparelhos de telefone mais baratos reduz um pouco os níveis de exigência e expectativa, acaba por me deixar um pouco mais complacente, menos dado a me irritar e me queixar ao primeiro engasgo.



Preparar minhas próprias refeições, otimizar as idas ao supermercado, provisionar a despensa e a geladeira são prazerosos não por um mecanismo de recompensa imediata, mas por provocarem uma sensação de propósito e sentido que se prolonga no tempo e convida à constância. 

Suspeito que essa satisfação – provavelmente a que move a família do Capitão Fantástico – tenha origem na ideia de prescindir de algo que outros ou principalmente você mesmo reputava necessário antes. Há um pequeno momento eureka quando se toma essa consciência, o contentamento de uma descoberta.

Muitos que hoje escrevem sobre independência financeira e aposentadoria antecipada relatam essa satisfação, que tem origem menos no saldo economizado e muito mais no desprendimento em face de coisas de que precisavam muito menos do que imaginavam até o dia em que experimentaram agir de outra maneira.

Mudanças assim costumam vir aos poucos, sutilmente – um belo dia você para para pensar e percebe que está livre de mais uma pequena obrigação-necessidade. Faz toda a diferença e vai na contramão dos mandamentos imaginários que pesam sobre tanta gente: a obrigação de se casar, de ter filhos, de comprar apartamentos suntuosos, de trocar o automóvel que “já tem cinco anos” etc. 

O desvio do ascetismo e a estrada do excesso

Não acredito que muitos achariam minha rotina pacata e frugal melhor do que suas vidas em casas sofisticadas e bem equipadas, automóveis modernos, compras frequentes, bebidas e petiscos requintados. Da mesma maneira que duvido que, algum dia, eu venha a cobiçar ou sentir falta desse tipo de vida. 

Parece que, enquanto muitos extraem prazer de pequenas e grandes indulgências, alguns outros se sentem mais satisfeitos justamente ao prescindir. Superior à satisfação de poder obter remédios para todos os males talvez seja aquela de poder evitar as doenças.

Tomar um comprimido por dia não é nenhum encargo tortuoso, mas quando o tratamento termina, muitas vezes se sente uma revalorização da própria saúde, uma consciência da sorte de sua própria integridade. Também ao final de um dia de ressaca, quando se nota que o corpo e a mente recobram o seu funcionamento normal, é comum experimentar um entusiasmo. 

O Capitão Fantástico provavelmente não acredita que ter que caçar cada refeição e tomar banho no rio seja mais gostoso do que viver numa casa com geladeira abastecida e duchas poderosas. Porém, a cada objeto e facilidade que deixa de comprar, ele renova a satisfação de escapulir da ressaca da vida urbana e perpetua a euforia duradoura de prescindir.

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