(Aviso: contém menções aos enredos de The Affair e História de um Casamento)
The Affair sempre foi um seriado sobre relacionamentos antes de tudo. Na primeira temporada, os episódios divididos entre dois pontos de vista pareciam a forma ideal de apresentar a investigação de assassinato que deu o contorno do programa. Uma vez esclarecidas as principais circunstâncias da morte, porém, o formato parece “cansado”, e intitular cada meio episódio com o nome de algum personagem passa a ser um apego a uma tradição já sem grande funcionalidade.
Na quarta temporada, quando todos os principais personagens estão morando em Los Angeles – Noah a contragosto, para manter-se próximo de seus filhos – o recurso volta a fazer sentido, e ao mesmo tempo o enfoque volta-se de novo às dificuldades, idas e vindas e reviravoltas das primeiras relações apresentadas pelo seriado.
No longa-metragem História de um Casamento, os protagonistas também se dividem entre Nova York e Los Angeles. No seriado, há tempo para explorar contrastes e estereótipos: em NY as pessoas são neuróticas e obcecadas, em LA exploram técnicas de respiração e cultos tribais, por exemplo. Em NY o trabalho as consome, em LA podem experimentar novas fronteiras sexuais.
No filme, sem folga para tantas divagações, o contraste entre os dois estilos de vida é resumido a anedotas: Charlie sente falta da possibilidade de caminhar proporcionada por Nova York, enquanto os demais alardeiam “o espaço” disponível na Califórnia.
No filme, sem folga para tantas divagações, o contraste entre os dois estilos de vida é resumido a anedotas: Charlie sente falta da possibilidade de caminhar proporcionada por Nova York, enquanto os demais alardeiam “o espaço” disponível na Califórnia.
Em alguns aspectos, os seriados de longa duração lembram novelas de televisão – os episódios se sucedem com mais do mesmo. Em The Affair, os personagens se apaixonam, traem-se, separam-se, depois se reaproximam, apaixonam-se novamente etc. Além da excelente trilha sonora da quarta temporada, porém, o que atrai no programa é o fato de que esses movimentos e a dificuldade de se desvencilhar do passado são comportamentos fáceis de reconhecer e empatizar.
Os principais personagens do seriado não são intrinsecamente corruptos nem vilões deliberados, mas quase todos praticam atos deploráveis. O programa explora as façanhas de encanto e horror surgidas no âmbito de seus relacionamentos. São pessoas cheias de qualidades positivas, capazes de seduzir e amar intensamente. No meio do caminho de seus amores, porém, há relacionamentos, e eles põem tudo a perder.
É bem o que se vê no longa História de um Casamento: quietos com seus pensamentos e sentimentos, os protagonistas registram por escrito o que amam um no outro, compondo as cartas belíssimas que abrem o filme. Nas duas horas seguintes, vemos como o casamento inviabiliza o exercício daquele amor, que aliás sobrevive ao fim do matrimônio e coexiste com os relacionamentos subsequentes.
Já se disse que o romance é algo superestimado: somos programados para nos apaixonar tão logo os estímulos corretos se alinhem. Não haveria, portanto, nada de único e transcendente numa reação quase fisiológica, nada de intrinsecamente especial nessa ou naquela pessoa. O enamoramento acontece nas mais variadas circunstâncias, com relação a pessoas das mais variadas formas, cores e configurações de caráter. Em História de um Casamento, vê-se que o ódio e a ojeriza também podem surgir pelas mais inusitadas razões, direcionadas justamente às pessoas que mais se ama, desde que permaneçam próximas por tempo suficiente.
Pode parecer esdrúxula a concepção de que o relacionamento mine o amor. O amor arrefece, dilui-se e se transforma durante o relacionamento, é o que se ouve. Qual seria a explicação, então, para quando ele retorna, inusitado, de ímpeto renovado? Ao longo das temporadas de The Affair, esses ciclos automáticos de encanto, ojeriza, afastamento e reapaixonamento se evidenciam à exaustão, com os casais protagonistas repetindo movimentos pendulares do início ao fim.
Vai ver, como na dinâmica celestial, os corpos não devessem se fundir de fato. O contato entre objetos estelares é sempre um acontecimento violento. Ainda que um meteorito não destrua um planeta, formará uma cicatriz, e sua matéria estará para sempre fundida no ente atingido. Talvez os afetos floresçam idealmente na configuração de estrela binária, dividindo um centro de gravidade sem que os astros jamais se choquem.
Conversava com uma amiga sobre os esforços que às vezes fazemos para nos desvencilhar do passado, esquecer relacionamentos malfadados e olhar adiante. Discutimos sobre tentar ignorar os sentimentos que nos provocam até que passem, esmiuçá-los em conversas, terapia ou anotações. Concluímos, porém, que não é boa ideia tratá-los como eventos passados a serem superados: esses encontros acrescentam crateras, rochas e metais à nossa superfície, mudam nossa composição química para sempre. Assim como as porções do corpo e da personalidade que incomodam ou constrangem, a única opção viável é administrar essa herança, aprender a lidar com ela e, em última instância, amá-la por ser parte de nós.
Em História de um Casamento, Nicole e Charlie se separam, retomam vidas distintas às margens de oceanos opostos, mas continuam – porque não têm escolha – a celebrar a porção de matéria alienígena que se incorporou à sua existência, voltam a se amar tão logo se livram do casamento porque, enquanto pessoas íntegras e saudáveis, nutrem também amor-próprio.



Comentários
Postar um comentário