Certa vez ouvi Ferreira Gullar dizer, numa entrevista para a televisão, que o seu amor por São Luís era algo que ele se sentia incapaz de explicar ou descrever.
A frase me surpreendeu primeiro porque eu supunha que um poeta de seu porte fosse capaz de verbalizar qualquer sentimento. E a sua candura ressoou em mim, muitas vezes obcecado por lugares em determinados períodos da vida, ao abrir a possibilidade de admitir que às vezes simplesmente não há resposta a encontrar.
| São Luís (MA) |
Pela mesma época cogitei – agora por conta própria – que a relação de alguém com a cidade é mais complexa do que com qualquer pessoa. As pessoas vêm e vão, falecem, os rastros dos ancestrais um dia se apagam, mas a cidade está sempre lá, de uma ou outra maneira. A cidade nos precede e nos sobrevive. É o personagem esférico por excelência.
Tremé, seriado pouco conhecido, parece fundar-se em uma constatação parecida. A partir de um recorte de Nova Orleans, especificamente do bairro que dá título ao programa, exibe personagens num formato sem personagens proeminentes (ensemble cast), sem protagonistas óbvios, e desvela suas vidas devagar, como um observador recuado, sem que tramas intrincadas se evidenciem. O seriado começa sem deixar claro para onde vai ou que tom vai adotar e, depois de alguns episódios, o espectador compreende que assim ele vai continuar.
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Elementos obrigatórios de Nova Orleans estão lá, desde a culinária, as festas de carnaval e a herança francesa até a música, talvez a única personagem obviamente mais destacada. A música se ouve várias vezes, em todos os episódios e, embora seja um barato ver medalhões como Allen Toussaint e Dr. John fazendo aparições, são ainda mais interessantes o processo de composição, o dia a dia dos músicos e as sessões que começam espontaneamente, quando dois ou mais instrumentistas se encontram por acaso, por exemplo. É algo muito distinto de uma performance ou um concerto, um fenômeno representado com sensibilidade na série, aproximando-nos da experiência de acompanhar melodias surgirem do nada ao perambular na Big Easy.
| Antoine Batiste tentando descolar algum com seu 'bone |
A própria cidade, aliás, além de cenário permanente é também personagem. Não na forma de paisagens e cartões-postais, até porque ela se encontra semidestruída e ainda mais empobrecida logo depois da passagem do furacão Katrina. Está presente principalmente nas reflexões dos personagens sobre ela, raramente estereotipadas ou óbvias, quase sempre vacilantes ou paradoxais.
| Albert Lambreaux, um Big Chief |
É esse tipo de reflexão que torna fascinante, por exemplo, a cena em que um juiz de direito explica que muitas vezes se pegou defendendo a cidade de detratores forasteiros e de preconcepções negativas ou racistas (“a preguiça sulista”) mas, no caso do desaparecimento que perpassa a primeira temporada, é obrigado a admitir e pedir desculpas pelas presepadas do sistema policial e penitenciário de sua paróquia. Ou a memorável cena em que Delmond, um personagem que tenta escapar do empuxo gravitacional de Nova Orleans, emociona-se ao ver por acaso os primeiros índios carnavalescos, misteriosos e magníficos, a desfilar depois da catástrofe.
| Big Chief a rigor |
Delmond Lambreaux é um músico talentoso, que aspira a uma expressão contemporânea mais universal, e por isso mora em Nova York durante um tempo e toca em uma turnê país afora. Porém, filho de um “grande cacique” defensor das tradições folclóricas da cidade, retorna e gradualmente percebe que a cidade natal fazia mais parte de si do que havia calculado.
Lugares, e talvez em especial as grandes cidades, com frequência provocam movimentos orbitais desse tipo. Em Tremé, ele é acentuado pela fuga dos habitantes na iminência do furacão, seu “exílio” por estados vizinhos e finalmente seu retorno, às vezes lento ou até inviabilizado por forças escusas. Muitos têm saudades, muitos ressentimento, outros sentem alívio e alguns até amargura, e assim se reúne um mosaico de reações e histórias.
| Steve aprende com os mestres |
O único que se mantém encantado por Nova Orleans apesar de todos os pesares é Steve McAlary, talvez o personagem mais simpático do programa, radialista, músico de talento ambíguo, quase-político e acima de tudo festeiro. Steve é branco e vem de uma família de recursos, assim como sua companhia ocasional, a chef de cozinha Janette Desautel, que personifica a culinária regional, outro traço distintivo da Luisiana. Ao contrário do amigo, porém, Janette sofre os piores golpes da devastação pós-furacão e, a contragosto, tende a se declarar vencida pelas peculiaridades da cidade fascinante mas também difícil.
Janette é alguém que cuida de se encontrar, assim como Delmond, numa Nova Orleans lentamente reparada por eles e vários outros personagens que de alguma maneira também se (re)constroem.
| Janette "na função" |
A pandemia de 2019 foi e continua a ser também um contexto profícuo de revisão das relações das pessoas com os lugares, evidenciada pelo frenesi no mercado imobiliário. Minha lida particular com a cidade oscilou em torvelinho nesse período. Meses antes do pânico mundial, de saída de um período sofrido, reconciliei-me com a capital depois de anos de certo menosprezo uma certa noite quando, num momento de leve euforia compartilhada, dei-me conta de repente do quanto havia ainda a desfrutar por aqui.
Mais tarde, já durante os confinamentos, a cidade metamorfoseou-se num local surpreendentemente silencioso e espaçoso e, vendo a noite cair devagar do último andar de um prédio certo dia, nos perguntamos se ela não poderia ser sempre assim, calma e perpassada por alguma causa comum maior do que ambições rasteiras, aliviada de urgências (por razões sombrias).
| NOLA |
Em outros momentos, as montanhas de lixo consumista, recolhidas com menos frequência, mais evidentes pela escassez de automóveis e pessoas ou de fato maiores pelo comprismo online das quarentenas, fizeram-me às vezes cogitar se a cidade enquanto forma de organização ainda faz algum sentido. A histeria coletiva (e suja) da criação de cachorros em apartamentos, acompanhada da imundície das calçadas por onde são levados para passear, me fez suspeitar que não. E depois, quando os carros retomaram as ruas aos enxames, apostando corridas infantis e produzindo um barulho ressaltado pelo contraste com a calmaria de antes, o retorno à “normalidade” teve certo gosto de pesadelo.
É um relacionamento sem fim: a cidade nunca será só uma coisa ou outra, é uma narrativa sem conclusão. Em Tremé, a cidade não é só ruína e dor, mas está longe de um parque ordeiro e edênico. Seus habitantes não são vitimizados, quase nenhum personagem é só bom ou mau, e assim Nova Orleans é servida como uma grossa “fatia de vida” ou “sanduíche de realidade”, sem pistas óbvias para quem tenta classificá-la como refúgio ou inferno.
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Sem cortes abruptos nos momentos críticos nem outros recursos indutores da compulsão de assistir “mais um episodiozinho”, e ao provocar às vezes a falsa impressão de que nada acontece, Tremé possivelmente decepcionará a audiência ávida dos seriados tradicionais. Mas encantará quem se interessa por observar como as pessoas sobrevivem e afloram – em Nova Orleans ou em qualquer lado – e sabe que, vida adentro, o roteiro quase sempre se desenrola bem devagar.
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