As coisas acontecem
De uma hora pra outra
Mesmo que demorem
A vida inteira para acontecer
(Carlos Posada)
Mais de vinte anos atrás, li o fascículo 63 de Hellblazer, um episódio estranho até para Garth Ennis. Já na primeira prancha, desenhada soberbamente (como sempre) por Steve Dillon, Constantine guardava uma expressão preocupada, um pouco pesada, segurava o paletó pelo ombro e, no alto da página, a razão vinha escancarada em letras enormes: QUARENTA. Nunca tive talento para adivinhar idades e não fazia ideia de quantas pessoas naquela faixa etária eu conhecia ou convivia, mas a cifra me parecia quase longínqua. Assim como o prospecto de voltar para casa de terno e gravata.
Com quarenta anos recém-completos, caminhando de volta para casa de terno e gravata (mas sem amassar o paletó segurando-o sobre as costas, claro), conheci outro dia, graças ao Spotify - este sim um fenômeno que eu já antecipava em em sonhos otimistas na época em que lia Garth Ennis - a faixa “Baba Hanuman”, de Krishna Das. O início calmo não alterou meus passos satisfeitos de fim de expediente mas, quando a percussão se iniciou, percebi que havia ali algo destacado do ordinário.
Na altura em que o coro das moças passa a entoar जय सिया राम, जय-जय हनुमान (Salve Sita e Rama!, Salve Hanuman!), eu começo a pressentir alguma coisa sutil, uma sugestão de sublime, e a repetição mântrica dos poucos versos instaura então um estado especial. Não algo que se impõe pela força estética, como uma sinfonia, nem pela potência expressiva, como um jazz ou um rock: a melodia apenas está, é, persiste e avança. E um perfume de seiva me invadiu o nariz por dentro, ou melhor, nem chegou ao nariz: desde o início, soube que é algo que não existe nem existirá. Tenho certeza de que não o conheci ao cruzar a mata densa e molhada da Ilha Grande, não o associo a alguma gramínea da península indiana que algum dia poderia conhecer, nem ao caule cortado de alguma planta de um dos mundos distantes de Luiz Eduardo Oliveira.
Desta vez o que ressinto é um perfume indescritível, associado à cor verde, mas sem relação com os salgueiros debaixo de cujas copas passo pelo caminho nem com as plantinhas cujos esquálidos caules eu cortava por curiosidade ou para provar o gosto décadas antes, quando era criança: aquela seiva e aquela fragrância nunca existirão, e apesar ou precisamente por causa disso eu sinto uma calma rara. A recendência que nunca viria a ser enriqueceu minha caminhada, minha noite, meu aniversário, minha vida, e eu me vi estranhamente grato por sua existência imaginada.
Poucos dias depois, revendo a última temporada de um seriado dos que mais gostei, conferi, por curiosidade, a data em que havia sido transmitida pela primeira vez: 2014. Eu me lembro muito bem desse ano, eu estava lá, e essa consciência não me trouxe arrependimento nem pesar, não me trouxe memórias ruins nem exaltadas. Eu não senti inveja do que viviam os personagens, suas angústias não me desencadearam pensamentos densos. A informação do ano de publicação apenas me pôs vivo e em paralelo com a existência daquele programa, de seus atores e produtores e da narrativa que ele continha, eu de fato estava “lá”, eu não perdi nada, não deixei de viver isso ou aquilo, eu existia, estava aqui.
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| Não falta seiva verde nos mundos do LEO |
O número que indica um ano qualquer me conectou às vidas, aos pensamentos, vontades e ações que criaram o seriado, e por alguma razão obscura me sugeriu a suficiência de existir, de saber-me vivente e senciente, confirmou que eu faço parte deste processo. A um lugar parecido cheguei sempre que pensei nas razões para escrever: não porque me sinto capaz de encantar o mundo nem inaugurar uma forma inusitada de prosa, nem porque me veja em condições de contar histórias melhor do que todos os que já o fizeram, muito menos porque ainda tenha a ilusão de que minhas dores e delícias sejam inauditas. Quero simplesmente inserir-me no mesmo fluxo de leitura, descoberta e identificação, ressignificação e escrita que me trouxe até aqui.
Lembrar-me do recorte de tempo delimitado por aquele número me permitiu por alguns instantes vislumbrar afetivamente o que havia teorizado literariamente, me convenceu de que experimentar a existência consciente é glória mais do que suficiente para todos nós que, por muitos acasos, viemos parar aqui. “Viver é a melhor vingança”, alguém muito inspirado disse, e nem sempre é preciso roçar a morte para descobri-lo. Quem por exemplo finalmente se recupera de uma ressaca ou voltou a amar depois do amor se dá conta disso.
Aliás, na aceleração caótica que me trouxe até aqui, eu amei mais vezes e mais rápido. Eu fui escorraçado, mas era amor. Eu fui ouvido, era amor. Fui resgatado, era amor. Eu experimentei euforia, era amor. Porque eu havia redescoberto minha própria cidade e reconquistado o mundo, eu tinha os bolsos cheios de amor e desforra. Eu fui desejado e amado ao mesmo tempo, e era amor.
Quando criança, eu quis brinquedos, ora uma bola, ora um veículo miniaturizado de plástico saído de algum desenho animado, ora uma “fita” de videogame. Tive sorte de crescer numa família cujo orçamento comportava a maioria desses caprichos, porém responsável o suficiente para não ceder a todos. E, quando era o caso de não cederem, como doía. Eu não “achava legal” essa ou aquela coisa, eu ardia de desejo e cobiça, desenvolvia obsessões, substituía pensamentos contínuos sobre uma coisa por outra, ainda mais desejável.
Eu procurei tanto amor em discos e fitas e rádios, em MP3 e streamings, persegui-o com tal elã em copos, garrafas, taças e latas que, se tivesse morrido disso, não seria de se surpreender. E teria morrido de amor.
Mais velho, eu desejei motocicletas e automóveis. Eu desejei ardentemente estar em lugares mais bonitos, mais interessantes, mais limpos, habitados por pessoas mais inteligentes. E desejei, mais do que todas essas coisas somadas e multiplicadas à vigésima potência, a atenção, o interesse e a lascívia de meninas, moças, mulheres. Por anos e anos seguidos, uma em especial, todas ao mesmo tempo, algumas por alguma razão: eu as desejei de maneira malsã, visceral, onírica, lírica, épica.
Eu fiz quarenta anos há alguns dias e andei pela minha nova vizinhança, um pouco menos central e boêmia do que a anterior, mas também razoavelmente ativa à noite. E o burburinho dos contínuos de mesas repletas de moças de peles e cabeleiras sedosas, intermináveis, guarnecidas das bebidas mais escolhidas pelos bebedores nacionais já não me injetava o vazio dos brinquedos cobiçados da infância, tampouco o oco sofrido de outras moças de beleza indizível: aquelas aglomerações deixaram de exalar a aura das festas inacessíveis e perdidas.
Talvez o melhor amor seja aquele por quem nunca tocamos e, sobretudo, aquele que finalmente sentimos por aquela que nunca tocaremos e, se o fizermos, já não fará tanta diferença.
Será possível que na meia-idade o amor venha a ser finalmente inteiro?
Sofri em lugares que sempre quis amar, sofri em cidades que depois vim a amar com a distância do perdão e da nostalgia formativa. Ardi por cidades que viriam a encenar a minha ruína, reaprendi a amar ruas e casas que desprezei, até começar a suspeitar que o amor mais fugaz é por mim mesmo.
Eu amei em tantas cores, amei tão ardentemente em distintas línguas, amei em diferentes paragens, continentes, para algumas vezes descobrir que nem tudo é amor. Mas aprendi então a amar a própria descoberta e, redescobrindo o amor na esquina debaixo, reassentar-me na ciência de que o amor está em toda parte.
Pode ser que meu presente de aniversário tenha sido aprender a amar quem já não me ama e quem deixou de me amar. Pode ser que a prova de que amadureci seja agora saber amar quem passou a amar outrem. Quiçá o amor mais cristão se traduza em amar e não menosprezar quem tem sincera admiração por você, investigar a origem desse apreço como quem busca compreender um parente desencaminhado.
Parece que aprendi o amor, quem sabe, mais difícil, amar quem se forçou a amar outrem porque você não a amou como esperava. Ou talvez ainda mais difícil seja amar quem já te ama. Suavizado pelo bálsamo do perdão está amar quem te magoou, ainda que mais tarde. Tornou-se menos difícil amar quem eu magoei, e não por remorso.
Trepei nos ombros de alguém que me amou desde o início para me erguer acima da linha de um ex-amor que me afogava. Eu a amei como um desesperado mas de nenhuma forma que se convencionou chamar de amor, eu a retive da maneira mais prolixa que sabia porque sabia que sua ausência me faria morrer de amor. Nós nos orbitamos por força do empuxo gravitacional de um amor que, de tão sábio, finalmente prescreveu a distância.
A perfeição do amor sereno, que só se assenta sobre os ombros de quem já amou muito, que prescinde do corpo, da presença e, por fim, das próprias palavras, finalmente me veio à alma. Quarenta: o amor de quem precisamos esquecer um pouco para que se salvem os envolvidos.
O início e o fim, a origem, o caminho e o destino, o terror e a glória, era tudo amor.
Dizem que se perde o telhado para se ganharem as estrelas. Ferreira Gullar explicou que compreender a composição e os mecanismos físico-químicos das estrelas não o impedia de contemplar sua beleza. Mas o cosmo e suas leis são indiferentes ao amor. O amor é insignificante, um conceito do neocórtex. Eu olho as estrelas e, por mais que pense em órbitas, gases, fusões, partículas, bósons e anos-luz, o que sinto é amor.
Eu sou amor ao contar as estrelas da galáxia, ao confirmar nossa condição ínfima, a insignificância física dos significados, e amo mais, porque a beleza é uma forma de amor. Pelo jeito consegui repor as telhas pelo caminho e ainda ganhei o amor estelar, tornei-me amor.
Eu fui despistado pelo amor em tantas páginas de romances e contos, entrevi-o em tantas esquinas de quadrinhos coloridos que não desisti porque escapou tantas vezes; e virei-me do avesso para encontrar alguns dos seus caquinhos nas minhas próprias narrativas. Morri um pouco para que o que ficou nesta bateia sobreviva, quem sabe, aos meus quarenta anos.
40 e 14, 82 e 22, alfa e ômega: em outras datas, vou formar outras frases sobre o amor. Menos grandiloquentes, mais sucintas, menos pretensiosas, espero. Sua evolução indicará, com boa sorte, que continuo a estar, ser, persistir e avançar neste mantra de sístoles e diástoles, inspirações e exalações, e é provavelmente o amor pela própria vida que nelas de fato se lerá.


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