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Dever de casa: "L'an 01"


Tax the rich, feed the poor
'Til there are no rich no more

I'd love to change the world
But I don't know what to do
So I'll leave it up to you

Population keeps on breeding
Nation bleeding, still more feeding, economy
Life is funny, skies are sunny
Bees make honey, who needs money? No, not poor me
(...)
World pollution, there's no solution
Institution, electrocution
Just black and white, rich or poor
Them and us, stop the war

(“I’d Love To Change The World”, Ten Years After)


Desde o início da pandemia, percebo uma espécie de viés cognitivo em minhas próprias reações. A primeira vez que escutei “I’d Love To Change The World”, do Ten Years After, achei que tinha descoberto uma profecia musical, os Nostradamus do rock. O desejo (ou necessidade) de mudar o mundo depois do covid sem saber como fazê-lo, a poluição global sem solução, negros e brancos (racismo), ricos e pobres (o crescente abismo socioeconômico), nós contra eles (a chamada polarização contemporânea), "parem a guerra!" (na Ucrânia): eles teriam previsto tudo há 51 anos.

Assistindo a "L'an 01" (de Jacques Doillon, Alain Resnais et Jean Rouch), lançado dois anos após a canção, confirmei que as pessoas tinham poderes premonitórios nos anos setenta. No começo do filme, a ideia de que algo enorme vai acontecer e a expectativa crescente remetem aos primeiros meses de 2020, quando escutávamos as notícias do vírus misterioso na China e depois da dizimação na Itália. Quando se pressentia que tudo estava prestes a mudar.

Paramos tudo, pensamos, não é triste

Como o ano 01, o vírus finalmente chegou, provavelmente a primeira comoção verdadeiramente global na era da hipercomunicação. Os primeiros confinamentos provocavam sensações variadas: sentia-se medo e apreensão quanto ao futuro, mas ao mesmo tempo se descobria com entusiasmo que o mundo pode de fato parar durante algumas semanas, que as ruas continuam a existir sem automóveis, que o trabalho pode ser feito de casa.

A euforia do ano 01 e sua proposta de reflexão se concretizaram em 2020, era em 2020 que a conta zeraria. No filme, criam-se vacas e galinhas em Paris, cultivam-se batatas nas calçadas; em 2020 os animais reconquistaram as cidades. As intermináveis oportunidades de pensar, ler, conversar, aprender coisas novas trazidas pela interrupção da rotina "trânsito, trabalho, casa" são tão empolgantes no ano 01 quanto em 2020. Nós paramos e continuamos a viver, a comer, a se comunicar, divertir-se, amar-se, era fantástico! (Tirando, claro, que uma doença mortífera se alastrava e milhões de pessoas não tinham mais fonte de renda)

Feijão na calçada

Em "L'an 01", a ideia de desmobilização lembra a greve à primeira vista, mas é na verdade bem diferente: a greve conta com a dependência do mundo industrial-consumista de determinado serviço para atingir seus objetivos. Quando se propõe parar tudo, o tudo é tão importante quanto o parar: rompe-se a dependência quando se desmobilizam os ciclos de produção e consumo. Tornam-se a acumulação e o papel-moeda desprovidos de sentido.

Os personagens de L'an 01 falam muito sobre o dilema entre os confortos da vida moderna, como os eletrodomésticos e os carros, e a escravidão que a sua compra implica, com trens pontuais e jornadas de trabalho de oito horas. A certa altura, um entusiasta do sistema industrial pergunta a alguns anozerounistas como eles pretendem fazer sem suas televisões e lavadoras. Eles respondem: já temos essas coisas.

🐒🐒🐒

Em outra cena, discute-se a interrupção do trabalho numa fábrica de massas quando o estoque chega a dois meses de consumo. As pessoas percebem que já têm o bastante.

Pode ser que a sociedade industrial já tenha desenvolvido tecnologia suficiente para diminuir o ritmo. Porém, observa-se entre as pessoas que já têm dinheiro suficiente para parar de trabalhar: são essas que não param nunca. 

Talvez aqueles que viviam na Amazônia há milênios compartilhavam intuições parecidas com as dos entusiastas do ano 01: eles aparentemente transformaram a selva em pomar à disposição de todos, já que a ocorrência desproporcional de espécies de árvores e plantas apreciadas ou úteis ao Homem não tem explicação ecológica (Amazônia, Arqueologia da Floresta). Desnecessário agarrar-se a um determinado pedaço de terra: em toda parte se acha mandioca, castanha e tucumã plantados pelos ancestrais. 

A revolução em 01...

O exercício muito cortazariano de dar um passo de lado antes de ações variadas, a leitura e as ocupações excêntricas dos entusiastas do ano 01 são análogas à tendência a aprender novas línguas, tocar um instrumento ou a cozinhar em 2020. Outro aspecto, porém, separa os dois espíritos utópicos: ao longo do ano 01, o mundo foi refeito por meio de uma verdadeira revolução. Ocuparam-se as avenidas, os escritórios e os palácios, como se queria fazer em 1968. Já 2020 está mais próximo no tempo dos fatos documentados em outro filme, "Um país que sabe se comportar", no qual se vê um esboço de mobilização ser esmagado a ferro e fogo. E em 2022 inclusive reelegeu-se o responsável, a contragosto, por medo dos neonazistas.

...e em 2020

Tratam de sufocar a França permanentemente revolucionária, mas não se consegue fazer com que os indivíduos esqueçam a atmosfera cheia de possibilidades do efêmero ano 01/2020. Nos Estados Unidos, os números das demissões voluntárias são inéditos, e mesmo no Brasil, onde a depressão econômica se arrasta há anos, lê-se "saco cheio" nos muros das fábricas e perde-se o trem de propósito (Depois dos EUA, onda ‘grande renúncia’ de demissões voluntárias chega ao país).

"Passinho para o lado"

Perpassa muitas das discussões mostradas em "L'an 01" o fato de que algumas necessidades humanas devem ser necessariamente satisfeitas: a alimentação, o abrigo, o deslocamento, o vestuário etc., seja diretamente, como fazem aqueles que criam galinhas e plantam tomates, seja de maneira indireta, como faziam essas mesmas pessoas nas fábricas e nos escritórios antes de "parar tudo". Pode-se dizer que as reflexões provocadas por "L'an 01" e o ano 2020 coincidem: como suprir essas necessidades sem se torturar nem se alienar.

Alguns antigos filósofos gregos acreditavam que as máquinas nos poupariam da maior parte do trabalho. Mas a era industrial chegou e a gente parece ter cada vez menos tempo. Os diretores do filme, de 1973, em outra profecia espantosa, advertem que confiar todos os nossos dados às máquinas mais modernas - os algoritmos - tampouco é a melhor decisão:


👂

Em 2022, o vírus ainda circula entre nós e o número de casos aumenta de novo, mas os governos e os patrões decretaram o fim da pandemia, o retorno aos escritórios e às salas de aula. Em "L'an 01", pessoas que tinham vivido a era industrial continuam a ocupar os escritórios, mas tudo mudou. Quando elas tentam encenar as rotinas típicas de um dia de trabalho anterior ao ano 01, a farsa não dura nem dois minutos e meio até que todos caiam na gargalhada. 

Dia de "batente"? 😂

Quanto tempo seremos capazes de suportar uma vida na qual é preciso fingir que a pandemia nunca aconteceu?

No redemoinho de dúvidas e sentimentos dos primeiros confinamentos, eu esperava que, assim como após o ano 01, dedicaríamos museus aos engarrafamentos, à terceirização da criação dos filhos, às camionetes 4x4 a combustão interna que usávamos para ir à academia, fazer compras etc.

"Não é exagero!", garante a moça

Eu esperava que, assim como é preciso explicar a uma criança anozerounista que visita um museu para que serviam um carrinho de supermercado, um aparador de grama e um rastelo, seria necessário, em alguns anos, explicar um estilo de vida que tornava as pessoas obesas a ponto de ser necessário operá-las, e então era preciso construir hospitais maiores e contratar mais cirurgiões. E que, para pagar tudo isso, era necessário cobrar mais impostos, trabalhar mais para pagar os impostos mais altos e, sem sobrar tempo para cozinhar, engolir lanches industrializados, cheios de açúcar e gordura, no metrô.

Peça de museu, quem sabe um dia

Parece que vai ser necessário um vírus mais letal para que a gente decida perder o trem.

Obrigado, Eve

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