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40: colonialismo e cosmopolitismo

Em 2013, o Deezer entrou discretamente no mercado nacional e eu não demorei a experimentá-lo. A proeza técnica de colocar todo aquele acervo online à nossa disposição me impressionou mais do que as recomendações musicais. Ou talvez eu não tenha pego o espírito da coisa logo de início: eu procurava faixas que já conhecia para “ver se eles têm tudo mesmo”. Um pouco depois, chegou o Spotify, mais famoso e com lançamento mais badalado, e eu tentei de novo, com mais atenção.


Nos primeiros dias, porém, o serviço parecia pouco inspirado: boa parte das sugestões era de música portuguesa. A experiência me apresentou pérolas como Trêsporcento, Doismileoito e B Fachada, mas deu a entender que "língua portuguesa" seria àquela altura a única variável sobre o Brasil com que haviam alimentado os algoritmos.

Quase dez anos de abastecer o site com segredos, caprichos e obsessões de melômano, porém, culminaram numa edição de "Descobertas da Semana" surpreendente, se não perfeita para mim. Numa típica situação em que a máquina cria algo superior ao que lograríamos manualmente, a lista continha uma visão de meus hábitos bem mais panorâmica do que eu próprio conseguiria sintetizar em duas horas de música. Classifiquei as trinta faixas assim:

07 faixas de rock, pop rock ou autorais anglófonas
04 de jazz (incluindo uma com vocal em castelhano de músico israelense)
03 africanas contemporâneas
02 africanas tradicionais e ou instrumentais
02 alemãs
01 libanesa
01 portuguesa
01 francesa
01 islandesa (Júníus Meyvant - obrigado, Debbie)
01 italiana
01 rock nacional
01 rock argentino
01 trilha sonora de filme
01 chorinho
01 soul
01 indiana instrumental e
01 do Tom Waits!

Foi como se o serviço tivesse se encarregado de montar uma retrospectiva de meus longos anos de usuário assíduo. Embora a maioria das gravações seja de origem (ou expressa em língua) ocidental, notar que "apenas" cerca um terço delas pode ser associado à torrente americana, admito, me proporcionou uma pitada de orgulho. Era uma lista bem mais cosmopolita do que se costuma ver em minha província sociocultural.

"Cosmopolita", aliás, é um termo historicamente apropriado pelo vassalo colonial, que o seria mais quanto melhor mimetizasse os senhores metropolitanos. Evoca hábitos jet setter e medições comparativas com as supostas principais cidades do mundo. Cosmopolita poderia ser confundido com aquele que frequenta os destinos aspiracionais do imaginário importado, com o praticante do peleguismo colonial, e isto é precisamente o contrário do sentido que emprego aqui.

"Já fala por si"

A abusada expressão "cidadão do mundo" não deve afinal ser colada aos viajados e elitizados: sentir-se confortável em qualquer parte será inclusive raro entre eles, já que a maior parte da Terra guarda bem pouca semelhança com as capitais dos mandantes do globo. Cosmopolitismo tem a ver, enfim, com enxergar como todas as pessoas, em todas as partes, buscam satisfazer as mesmas demandas e resolver os mesmos problemas, e sentir-se capaz de empatizar e compreender cada um desses caminhos e soluções. Inclusive no exato lugar em que se calha de nascer ou estar.

Particularmente, tenho dificuldade de conceber lugar deste mundo que não me despertaria uma curiosidade mordaz de viajante, que não me atiçaria apetites de buffet, não me faria girar as orelhas para línguas e regionalismos, e as regiões que me tocaram habitar, abstraído o costume dessensibilizante, certamente provocam todos esses efeitos.

É com certo furor de neófito, então, que delato o colonialismo do antanho, obsoleto, "ridiculão à larga" como lascou Eça de Queirós, espécie de fóssil vivo das Américas, ironicamente consideradas parte do "novo" mundo. Enquanto os autoproclamados ex-proprietários do planeta parecem, eles próprios, haver superado a síndrome de Nhamandu, o pacto continua vivo (e flamejante) nos corações coloniais.

A mais óbvia manifestação dessa paixão renascentista é a mania de meter as coisas em escala hierárquica. Veja-se que não falo aqui de nenhuma construção acadêmica, é algo evidente: o brasileiro vive e morre pela hierarquia. Lembro-me de um episódio em que um jogador de futebol foi insultado no Peru por ser mulato. O comentário mais comum era: "mas eles são todos índios!". Aparentemente, na Polônia, o insulto seria mais legítimo.

A estratificação das nações da Terra durante a guerra fria: primeiro, segundo e terceiro "mundos", muitíssimo longe de ofender nossos brios coloniais, caiu como uma luva sobre os brasileiros. Afinal, como bons fiadores do pacto, sabemos o nosso lugar. Os desfavorecidos pelo empreendimento colonial, assim como os desgraçados de hoje, não se incomodam de verdade com o estado de coisas, ressentem-se no máximo de não estarem entre os de cima, os que se dão bem.

"Clássico é clássico e vice-versa" - Jardel

Quem nunca ouviu que, "se eu fosse político, roubaria mesmo, se não vem outro e rouba de qualquer jeito"? Os mais fervorosos defensores da lendária "meritocracia" não são os bilionários nem os herdeiros de bancos, mas precisamente aqueles nascidos em algum rincão esquecido do país, que comeram o pão que o diabo amassou, correram atrás e, um belo dia, passaram para o andar de cima. Não, nenhum elevador pode subverter o pacto colonial, eles vão dizer. Não é por acaso que "exclusividade" é o termo mais adotado nos slogans de anúncios comerciais, de sapatos a apartamentos, enquanto inclusão é papo de comuna do campus.

Qual não é a surpresa do homo colonialis quando chega a um país classificado pelo Comitê Olímpico das Nações como integrante do "primeiro mundo" e encontra mendigos pelas ruas, ladrõezinhos à solta e hospitais meio caídos? Tudo lá, afinal, deveria necessariamente ser superior ao que se sofre nos porões da terceira classe planetária.

Coerentemente, o pensamento hierarquizador funciona em mão dupla: "estamos ferrados, mas festa que nem o carnaval não existe!". "Nosso povinho é uma merda, mas praia que nem aqui não tem!". Se um bife num país superior decepciona, o ranking é terminante: "carne que nem picanha não existe em lugar nenhum!". O fato de que nada disso seja verdade é pormenor sem importância no panorama do furor colonial, que ceva lorotas de estimação do tipo "o sul do Brasil é muito mais europeu!" e "se tivessem ficado os holandeses, isto aqui seria um primeiro mundo!".

🙏🏼

Melhor ou pior, enfim, é muito mais legal do que diferente ou variado. É corridinha, é "meritocracia", é vencer na vida, é chegar lá! E nós devemos, claro, almejar o que há de melhor, não nos compararmos com a Indonésia nem Madagascar, mirar no que há de mais elevado, tomar como referência o primeiríssimo mundo.

Pouco importa que hoje todas as partes da Terra sejam acessíveis a mais gente do que nunca: para o homem colonial, os domínios de deus se resumem aos polos do pacto - a metrópole e as províncias selvagens, o primeiro e o terceiro mundo. Nos currículos e nos jantares, declarar haver visitado os destinos aspiracionais da classe média (os lugares de sempre nos Estados Unidos e na Europa, Canadá, às vezes Austrália e N. Zelândia) é como bater a mesa, é o trunfo final. Torna-se assim alguém "que viu o mundo".

Uma conhecida não conseguiu esconder o orgulho ao contar: "passei cinco anos em London, abri a cabeça, é outra cultura!". Deve ter sido mesmo epifânico um dia descobrir-se olhando para a esquerda ao atravessar a rua ou com vontade de comer purê de ervilha, pensei. Seus olhos só não brilharam mais do que os das várias mães que encheram a boca para me contar que "minha filha mora nos Estados Unidos há cinco anos e o marido dela é [nada menos que] americano!" Várias dessas filhas, por sinal, haviam descoberto o mundo durante um intercâmbio “cultural” em Iowa ou Vermont.

"Mais um sonho realizado!"

Curiosamente, não se ouve quase ninguém dizer que fendeu a moleira em algum lugar minimamente afastado do eixo colonial, e nem parece que seja questão de prosperidade e desenvolvimento, já que Japão, Cingapura, Hong Kong e Israel, por exemplo, parecem não integrar a cartografia das caravelas.

"Lá fora não tem isso de empregada em casa nem frentista no posto!", dirá um h. colonialis muito viajado, para incompreensão de indianos, filipinos, sauditas ou mexicanos. "Só aqui não se pode fazer topless na praia", "só em Banânia para um iPhone ser tão caro!", "lá fora já proibiram sacola plástica há muito tempo!", "essa roubalheira, é Brasil!". Nosso lá fora, afinal, é só um, é a mítica metrópole, o inatingível Eldorado de civilização e limpeza daquele outro mundo, o "primeiro", o da prateleira de cima.

A certa altura, vivendo numa cidadezinha montanhosa, atribuí praticamente todos os males da vida ao fato de estar ali, e só bem mais tarde vim a me dar conta de que aquela mania era claramente fruto de uma mente malsã. Não será efeito de alguma estranha perturbação, também, associar a lugares de "categoria superior" cotidianos privados de todos os dissabores que nos assolam em Pindorama? (Ironicamente, a Terra sem males, Yvy marã e’ÿ, é um mito guarani.)

Quando uma pesquisadora dos quilombos de Santa Catarina me contou que, tendo a pele mais clara do que a dos irmãos (bilaterais), era ela própria tratada de forma diferente em casa, passei a suspeitar de que, mais do que uma (longa) fase de doidice, a paranoia colonial, que corrompe até amor de mãe, é uma força definitiva sobre certas sociedades.

É de se reconhecer, porém, que a brutalidade colonial não poupou os próprios caras-pálidas - as províncias locais das grandes forças da expansão europeia foram e continuam a ser subjugadas a porrete, caso do projeto unitário radical dos jacobinos, que criminalizou as línguas regionais, e do aborrecível imperialismo castelhano, com paralelos em muitos países da região até tempos recentes, a exemplo do projeto dinamarquês de aniquilação dos esquimós da Groenlândia e da lenta agonia dos Sámi.

🦌

Especificamente de nossa "pátria mãe" vem, todavia, um pequeno alento: paradoxalmente, sob os estatutos da União Europeia - uma iniciativa em princípio ainda mais centralizadora do que os sangrentos estados-nações - a língua mirandesa passou a existir oficialmente e foi redescoberta.
Muitas lhénguas ténen proua de ls sous pergaminos antigos, de la lhiteratura screbida hai cientos d'anhos i de scritores hai muito afamados, hoije bandeiras dessas lhénguas. Mas outras hai que nun puoden tener proua de nada desso, cumo ye l causo de la lhéngua mirandesa.
Por aqui, eu, no fim de um processo que provavelmente levou mais do que dez anos, revi, em tom de "retorno às origens", o colonialismo que influencia aspectos insuspeitos de nossa forma de nos inserirmos no mundo. Ao contrário do streaming musical, a ser alimentado com suas preferências, foi mais caso de subtrair, desaprender estruturas arraigadas de pensamento.

A desmistificação proporcionada por algumas viagens, o efeito tabula rasa de um episódio depressivo, a histórica pandemia de 2020 e, sobretudo, amizades enriquecedoras restabeleceram um relativo pragmatismo - no melhor dos sentidos - quanto a encontrar-me num lugar ou em outro. Não de um dia para outro: quase a conta-gotas, ou como um quebra-cabeças que se demora para montar.

Não é tão difícil ouvir loas ao Brasil - muitas vezes enunciadas com pouca sinceridade por quem quer sentir-se melhor - mas aproximar-se, um belo dia, de alguém que efetiva e espontaneamente desfruta de uma vida construída para ser sensorialmente bonita, rica de sentido e objetivamente aprazível no país tem um efeito bem mais intrigante. Finalmente conhecer alguém que (sem aspirações de viver de sua arte na praia perdida sob a doutrina Rastafári) esteve na Índia e na Tailândia antes dos manjados destinos aspiracionais da classe média faz pensar.

Um contato com alguém que fez escolhas muito diferentes das minhas, que compreende as estruturas e as origens do que somos melhor do que jamais terei oportunidade de saber; caminhar entre as quase lendárias pessoas daquele "Brasil distante" (e não as que orbitam turistas); contemplar a cidade apascentada enquanto o vírus subjugava de igual maneira todas as nações; dar-me conta de que o curto-prazismo corporativo, o compadrio dos conselheiros de administração e o financismo abstrato não são, afinal, as chaves da prosperidade na Terra; emergir do túnel comprido da angústia para rever-me no ponto de partida inteiramente transformado: nunca vou saber em que proporção cada uma dessas experiências contribuiu para que eu desembarcasse no que parece, em contraponto ao colonialismo anterior, um relativo cosmopolitismo, na acepção que venho usando aqui.


O gigantismo do país nos isola, é mais difícil para nós vislumbrar outros lás foras do que para um panamenho ou luxemburguês. Quem sabe a hipercomunicação e o streaming nos convidem, como fez o Spotify no Brasil, a olhar para um pouco além do eixo transatlântico e superar as primeiras cantilenas portuguesas? Vai ver as gerações livres da televisão e armadas de internet percebam mais mundos mundo afora (estão aí os k-poppers que nos enchem de esperança) ou até redescubram, depois de algumas voltas, umas faixas interessantes gravadas ali na esquina. A partir de minha limitada experiência posso dizer apenas que é mais espaçoso do lado de fora das caravelas.

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