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40: esse bodyboarding tá diferente

São relativamente comuns relatos de pessoas que ficaram “de fora” do mundo por décadas: condenados que recobram a liberdade e têm que se entender com a internet e os smartphones, organismos tenazes que acordam de anos e anos de coma e emergem em realidades futuristas. Mas se na ficção distópica eles quase sempre se veem em apuros, quero crer que será empolgante acordar numa época em que o trabalho remoto é uma alternativa e as contas podem ser pagas de casa.

A partir da adolescência, quando me mudei para longe do oceano, o mar tem sido objeto de uma evidente obsessão: preenchi páginas de diários, crônicas e ficção com digressões sobre todos os aspectos relacionados a estar perto do Atlântico: vistas, cores e resplandecências; o cheiro úmido e salgado da maresia; o marulho hipnótico; os ciclos caprichosos das marés; os humores dos ventos e os seus efeitos sobre a textura da água e o comportamento da ondulação; o atrito incessante da movimentação de ar nas orelhas: está tudo lá, debulhado e metaforizado até o limite das minhas habilidades. 

arrebentação desastrada
torna canudos de vidro
em nada

Por ocasião da despedida definitiva de uma parte do país onde ficam recortes litorâneos que a certa altura considerei “meus”, resgatei, 26, 27 ou 28 depois, minha clássica Mach 7-7 (Morey Boogie) de um depósito empoeirado para me aventurar, fora de forma e sem pés-de-pato, numa arrebentação desfavorável. Foi então, aos 40, entre ondas do tipo “caixote” ou “quebra-coco”, em que conseguia deslizar por dois, três ou cinco segundos apenas, que redescobri, como se tivesse ouvido as palavras mágicas, porque passava tanto tempo na água quanto era mais novo.

Belas pranchas, Glenda (Kozlowski)

Em calhamaços engavetados ou publicados sobre a atmosfera marítima, com pormenores sobre os átomos do vento úmido, da espuma salgada e da sílica quente, não há nenhuma menção ao bodyboarding, como se fosse uma vergonha da infância, algo a ser esquecido, um ensaio para o surf propriamente dito que nunca encerrei. E então se fez óbvio, como uma pequena epifania, que a força de gravidade do mar sobre meus pensamentos estava ligada também ao frenesi agudo e fugaz proporcionado pelo hábito abandonado de pegar onda.

Nenhuma prancha retangular em “Maynard e o Rato”, do Bob Peñuelas 😥

Diferente dos grilhetas libertados, eu já andava familiarizado com a internet (inclusive o YouTube) e pude me inteirar rapidamente do que anda acontecendo. A minha surpresa, porém, foi parecida com a do sujeito que sai da penitenciária e dá com drones filmando o quarteirão e carros orientados por satélite: o rolo ou el rollo (roll, power roll) já quase não se pratica, e o 360º (belly spin), arroz-com-feijão da modalidade nos anos 80, agora é algo que fazem entre as manobras relevantes, como se quisessem dar sinal de vida para não deixar a plateia entediada demais.

"QUE ROLO FOI ESSE??" (Jojô T.)

Em seu lugar está o ASR, air roll spin, uma proeza que, como alguém inadvertidamente confrontado com a imagem de uma suruba rebuscada tem que se concentrar para entender quem está fazendo o quê com quem, eu tive que rever muitas e várias vezes até compreender do que se trata. Sobretudo, os surfistas agora se descolam da água com uma facilidade quase sobrenatural: nesse meio tempo em que andei distraído, o bodyboarding se tornou um esporte aéreo.

Embora já não se vejam por aí as cobiçadas Morey Boogies e BZs dos anos 80 e 90 e a parafina tenha virado insumo para os pontos de empunhadura, as pranchas mudaram muito pouco no formato e aparência. A cordinha (leash, strap) agora é espiralada e presa no braço em lugar do punho, mas os pés de pato são idênticos. As ondas, obviamente, não sofreram nenhuma revolução, mas as pessoas ganharam os ares, um pouco como os fantásticos peixes-voadores vermelhos que às vezes, esperando o swell, eu via pular em sequência.

👀

Intrigado, revi registros como alguns do multicampeão da década de 90 Mike Stewart, que, mesmo proporcionando espetáculos desportivos, se mantinha basicamente atado ao fluxo das ondas, a não ser quando o lip acontecia de empurrá-lo perpendicularmente. Agora, contando com esse empurrão e valendo-se dele como as aves migratórias administram as correntes de ar, os praticantes se descolam das vagas e, com as pernas e pés de patos soltas pelo ar, lembram rãs pegas de surpresa por uma anta que se jogou de repente no remanso. 

Na minha infância, o bodyboarding era visto pela maioria como algo apenas um pouco mais elaborado que as pranchinhas de isopor infantis. Seria uma introdução, o primeiro passo, uma “fase” antes do surfe em pranchas de fibra. Algo como o skateboarding de rua, relativamente simples e seguro, antes do half-pipe, que requeria mais experiência e coragem. Talvez em razão dessas concepções erradas, e por não ter tido tempo de me aprimorar no surf de pé (que aliás nunca me pareceu tão eletrizante), reprimi esse gosto por tanto tempo.

🐸

Mas não é nada disso: o bodyboarding é provavelmente tão antigo quanto o surfe, Tim Cook fala de polinésios deitados ou de joelhos em alaias - pranchas mais retangulares - desde o século XVIII. Mais versátil e mais segura, a bodyboard é muitas vezes pioneira nos locais de surfe (picos ou hot spots), com destaque para a “descoberta” do fabuloso Frontón, nas Canárias. E, embora o surfe de shortboard tenha obviamente evoluído quanto à força e à amplitude das manobras, a (r)evolução do bodyboarding dá indícios de um esporte vibrante e em expansão. Aparentemente, até as saídas das ondas agora são muitas vezes aéreas (e me remetem às rampas do bicicross, outra diversão da infância).

"Marque a opção que descreve algo que não existe mais:
a) revista de bodyboarding
b) revista de $2,50
c) revista
d) 'el rollo'
e) todas acima"

Pierre-Louis Costes, campeão mundial do esporte, conta que não foram programas de televisão, comerciais, revistas nem a internet que o levaram para o bodyboarding: ver a alegria e a despreocupação das pessoas que o praticavam em praias de Casablanca é que o encantou. Mesmo para um profissional do seu soberbo nível técnico, admite, há pouco dinheiro na carreira. O que o inspira é o barato da modalidade em si.

Rabeirar o colega não pode

É um relato constante entre os que observam o bodyboarding: sempre há alguém pegando onda, e essas pessoas estão sempre passando bem, divertindo-se, sem necessariamente se preocupar com esmero técnico nem com as últimas manobras aéreas. A bodyboard é muito menos exigente em termos de ondulação do que a shortboard, a maioria das marolas é suficiente para projetar um corpo e, como alguém que corre sobre a esteira rolante do aeroporto, o praticante recebe uma aceleração imediata em sua presença material, um afago nos mecanismos de recompensa, experimenta uma conexão inusitada com a praia pacata. Rente à água, a perspectiva de velocidade do corpo é potencializada, e a interação com o turbilhão, simbiótica.

Outro haiku para concluir (agora do Bashō)

Steve Jobs costumava dizer que a locomoção humana é tecnicamente pouquíssimo eficaz quando comparada à dos condores ou atuns, por exemplo. Se medida a partir de um indivíduo de bicicleta, porém, o sapiens saltaria para o alto da lista (o computador seria a bicicleta da mente, era o mote). Assim como a bicicross catalisa a infância de bairro e torna as férias na praia cinquenta vezes mais legais, a mágica inicial da bodyboard é provavelmente essa, o poder de transformar a praia de sempre em algo inspirador e, às vezes, transformador. 

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