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Dois Rios


Leve, leve
Não chora mais agora
Tudo a salvo, respira fundo e olha
Vai com calma, vai de coração

Até porque deixar pra trás
Pode ser andar pra frente
Tanto fez se tanto faz
Vai em paz e vai contente
(Leve, Tim Bernardes)

Olha o retrovisor e foi alucinante
Esse andar soprando a vida adiante
Com a escolha de, a escolha de só confiar
(...)
E o que virá, é o que virá
Não importa mais, já não sigo só
(Blue, Dado Villa-Lobos)


(Alguém me disse, quando tudo já havia acabado e eu não sabia, que tinha me amado, como se confessasse uma fraqueza moral - o pretérito é que machucou. Outrem, na manhã de uma noite ao mesmo tempo delicada e sublime, enfiou a cabeça no travesseiro lamentando a má notícia de que poderia estar se apaixonando. Esses dias devo ter caprichado no tato e na alegria porque o risco de haver amor fez com que me dissessem que ficaríamos por ali, antes de quase tudo.)

Rios

Numa praia delimitada por dois rios, uma extremidade é marcada também por um rochedo coberto de mata úmida na base. Ali, depois de muitos anos de introspecção meio exagerada, hábitos noturnos e clichês boêmios, me vi num cenário raro de quase solidão, num ponto entre os mais bonitos da Terra, seminu como outros bípedes que talvez andaram por lá milênios antes. Com o rio calmo às costas, o abrupto monte de granito à direita e a água transparente ao redor, recebi as marolas de vidro nas pernas e no tronco como se reencontrasse o nervo que me ligava ao mundo natural, anestesiado desde a adolescência. Uma euforia discreta e uma alegria plena se me injetaram, eu mal suspeitava de que algo duradouro havia se iniciado ali.


Tubo

Sofrendo em cima de uma prancha emprestada numa ondulação que eu conhecia pela primeira vez, vi, lateralmente, pelo ângulo mais cobiçado dos fotógrafos de surfe, um sujeito qualquer dilacerar uma parede azulada e curva, repetidamente, enquanto a onda formava um cilindro oco e quase perfeito atrás dele. Depois de transcender praticamente todas as cobiças de objetos, pertences, veículos e lugares, experimentei de novo o curioso sentimento da inveja. Inveja espontânea de ser capaz de estar naquele espaço daquela maneira, expressar-se fisicamente por aquele meio.

Relíquia

No último Natal, livre pelo feriado estendido, reencontrei a velha prancha da infância, preservada como se guardada num museu. Antiga, mas de acabamento profissional, tinha acumulado só um pouco de poeira. Sem pés-de-pato nem ondas apropriadas à vista, fomos à praia cheia sem pretensões. E estava tudo lá, ainda e sempre: o tempo e a posição certas, o deslizar ligeiro, o senso da precipitação, o medo do colapso hídrico, o sacolejão duro da água mole e, nos acidentes, a areia no lugar errado. Deslocar-se sobre a água e junto com a água, com o rosto rente ao turbilhão, entrar ou fugir do tubo, a vida era boa e muitas camadas de repressão precisaram se acumular para que eu tivesse me esquecido desse estado por décadas. Mas ele tinha voltado a acertar a veia e não iria embora tão cedo.
***
Para as coisas efetivamente relevantes, o tempo aparentemente se torna irrelevante, ou inexistente, como a ideia de cima e de baixo quando se flutua livre da gravidade. E, como sua contraparte obscura, o medo de viver, a insegurança e os ciúmes também não se limitam a conspurcar a água rio abaixo: contaminam todo o torvelinho, não se detêm nos diques patéticos que tentamos interpor, infectam todos os passados e futuros possíveis.

Alguém uma vez advertiu que não se deve ignorar uma lua cheia no céu porque, matematicamente, não veremos tantas assim ao longo da vida.

Na ressaca de um término, os ressentimentos finais, os "porquês dos comos" e os impasses são ainda, em perspectiva, muito maiores do que o resto da história. Alguns passos na direção oposta daquela história, porém, põem as coisas no devido lugar. Início, meio e fim tornam-se gradualmente proporcionais.

Medo de ressaca?

E aí talvez o início recobre a sua merecida superioridade mnemônica, principalmente quando nos apaixonamos. Porque é depois de bem concluída a adolescência que nos damos conta de que se apaixonar, até mais do que as luas cheias, é algo raro. E dar azo a essa experiência, por mais estranhos e variados que sejam os percalços, é um dever moral, um imperativo ético. Arrepender-se de algo que se seguiu a esse fenômeno bissexto é renegar a própria vida em alguma medida, é agir para anular parte de si.

Apaixonar-se desafia o fluxo cronológico moderno. Um balde de óleo no oceano ou num lago espalha-se em todas as direções. Mas o rio só se move para um lado, e arrasta tudo em sua corrente. E o enamoramento subverte a mão única do tempo, como se fosse possível criar uma avenida fluvial. Verbo no infinitivo, ele contém todos os tempos possíveis dentro de si, irriga-nos rio acima e rio abaixo. Manter-se seco à sua margem é o suicídio saudável, é subir para a forca hoje porque um dia enfim se morre de qualquer maneira.


Há muitas escusas possíveis para fincar-se na areia: a desconfiança e os ciúmes residem na margem mais obscura, o medo alcança até os trampolins, atracadouros, escadinhas, tobogãs aquáticos.

Medo provavelmente porque o romance incipiente é um “pico” novo, mar de valas, armadilhas, remansos, refluxos e maravilhas ainda desconhecidas. Chegar ao ponto certo implica atravessar vagas de espuma recente, resistir às sequências que rebentam bem na nuca, encontrar força para submergir ainda mais uma vez, ou várias, depois que o fôlego já se esgotou, avançar sem saber, do ponto de vista desfavorável de quem rema deitado, se aquela é a última ou se outras tantas ondas ainda esperam mais atrás.

Falando do mar português, Pessoa lembrou “que quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor”. Quem quer descer pela parede d’água tem que vencer a sequência. Para provar dos ápices do arrebatamento, é preciso transitar rente ao precipício molhado e, quase sempre, esperar o vagalhão terminar sua tentativa de te afogar antes de ver de novo a luz da superfície. “Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu”.

"Tudo a salvo"

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