Foi provavelmente em 2006, quando ainda assistíamos a filmes em DVD, que descobri, improvável e escondido numa locadora de interior, “Um homem e uma mulher”, do Claude Lelouch. A fotografia monocromática, o ritmo contemplativo, as paragens ventosas, a beleza intrigante da Anouk Aimée e a exuberância da bossa nova em seu pico, traduzida em francês, conspiraram para uma pequena obsessão pelo premiadíssimo filme de 40 anos antes.
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Eu era recém-formado e não sabia de que maneira trágica aquele filme poderia estar relacionado a um grupo que eu ouvia quando calouro, Noir Désir, responsável pelo inspirado “Des visages, des figures”, lançado em 2001. Provavelmente ainda me lembrava porém de que, sedento por mais material do grupo, tinha escrutinado os discos anteriores, em especial “Tostaky”, de 93, e “666667 Club”, de 96. E de que, estranhando o silêncio da banda depois do marcante Des visages… pesquisei notícias até saber do episódio que praticamente encerrou a sua trajetória.
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Não foi numa turnê do grupo mas sim em razão de uma filmagem da namorada atriz que o vocalista, Bertrand Cantat, veio a se encontrar em Vilnius, capital da Lituânia, no final do mês de julho de 2003. Ao final de uma noite (como diriam em francês) “regada”, inclusive por substâncias pesadas, tiveram sucessivas discussões acaloradas e, já de volta ao quarto de hotel, uma altercação física. Teoricamente, foram dormir e, no dia seguinte, só ele acordou. Ele foi julgado, condenado e preso, a banda parou de lançar discos e eu tirei aquilo da cabeça.
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Em 2008 ou 2009, de férias, lembrei-me do filme. Ainda existiam locadoras e encontrei não apenas o título original como a continuação ou tributo, “Um homem e uma mulher: vinte anos depois”. Apesar de menos impactante para mim, o filme de 1986, ao retomar os mesmos atores e a dinâmica dos dois ao longo do tempo renovou o fascínio pelo pequeno universo ficcional criado por Claude Lelouch. O DVD trazia também “extras”, cenas de bastidores e entrevistas. Numa dessas, uma resposta do diretor em particular se gravou na minha memória: a partir de uma pergunta que se enveredou pelo tema da ternura, Claude, como quem revela se prefere o feijão em cima ou ao lado do arroz, disse: “eu não sou terno” (je n’suis pas tendre).
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| Vinte anos depois |
Eu não sabia que, desde 2007, Bertrand Cantat já desfrutava de liberdade condicional. Nem que havia corrido de volta para os braços de Krisztina Rády, mãe de seus dois filhos que o amava e defendia de maneira incondicional. Muito menos que, extinta a pena em 2010, ele, aparentemente um valentão doméstico incorrigível, havia possivelmente induzido o suicídio da própria Krisztina, com quem então morava.
Não acompanhava, aliás, nada do noticiário quanto a essas pessoas quando, em 2018, passando frio em alguma estação de trens na França, deparei com um cartaz (semicilíndrico, agregado a uma pilastra) em que Jean-Louis Trintignant, ancião, anunciava seu trabalho atual no teatro e, ostentando os efeitos do tempo sobre um corpo esguio, a fase corrente de sua existência orgânica. O que me chamou de fato a atenção não foi a multitude de finas rugas no rosto do galã de “Um homem e uma mulher” mas a evocação contida em seu sobrenome. “Trintignant” - algo sombrio cercava aquela combinação de letras.
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Foi só então que me dei conta da coincidência de nomes e soube que Bertrand Cantat, vocalista e principal compositor de um grupo para mim formativo, havia espancado fatalmente Marie Trintignant, filha do homem que encarnou Jean-Louis Duroc duas vezes no cinema. A concatenação tardia, por alguma razão que me escapa, foi estranhamente marcante, como se eu houvesse descoberto uma conexão intrínseca entre fatos relevantes da minha própria vida.
Foi também em 2018 que tive contato com “Amor Fati”, primeiro disco solo que Cantat havia publicado no finalzinho do ano anterior. “L’Angleterre”, faixa lançada como single, não deve nada aos grandes momentos do Noir Désir. O sujeito estava de volta e, para quem já tinha experiência em letras de temática europeia, a saída da Inglaterra do bloco - pior ideia dos últimos tempos - era um mote irresistível. A sua abordagem da questão dos refugiados se mostraria ainda profética, e talvez até mereça uma sequência agora que o arrependimento se instalou e, livre das balizas inconvenientes da União Europeia quanto a direitos humanos, os ingleses planejam exorbitar flagelados para Ruanda e armazená-los em barcaças.
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| Regrexit |
Entusiasmado, voltei a procurar notícias sobre a possível reintegração social do vocalista e vim a saber que as tentativas de retomar as apresentações com o Noir Désir foram inviabilizadas por protestos, engrossados principalmente por mulheres indignadas. A banda foi em seguida encerrada de vez. Gravadoras recusaram trabalhos de Bertrand Cantat, a primeira entrevista a Les Inrockuptibles foi questionada e a capa de 2017 causou polêmica que envolveu até a ministra francesa de igualdade de gênero.
Cantat afirma que pagou sua dívida com a justiça e que quer apenas voltar a trabalhar. É uma pretensão legítima do ponto de vista jurídico. E relativamente factível se o ex-condenado fosse motorista, contador, operário ou advogado. A dinâmica musical suscita, porém, afetos nem sempre corriqueiros e a reabilitação do ex-condenado esbarra na circunstância de que a extinção da pena não foi suficiente para que as pessoas o perdoassem.
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Entrementes, Claude Lelouch revisitou a história de Jean-Louis e Anne ainda mais uma vez, numa espécie de “Um homem e uma mulher: 53 anos depois”, com os mesmos atores. Foi provavelmente uma despedida para Trintignant, que viria a morrer no ano passado. Descobriu-se que Krisztina Rády foi objeto de obsessão de Cantat após a pena, que ele infernizou sua existência durante bons anos e que provavelmente contribuiu para seu suicídio - reabriu-se formalmente o inquérito policial.
Também voltei a ver o filme recentemente, acompanhado, e experimentei uma pequena decepção por haver mantido em tão alta conta um filme que, em reprise, já não é tão impressionante.
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| Vinte anos |
Este ano completaram-se vinte anos que Marie Trintingnant, aos 40 anos e com 40 quilos, foi esmurrada até a morte pelo sujeito com quem dividia a cama. E que reclama de não conseguir trabalhar, como um injustiçado. Nunca me envolvi em episódios macabros mas me pergunto até que ponto não divido com ele a capacidade de minimizar ou esquecer a própria vileza. Ponderando o fato de que ele tentou sustentar que o assassinato foi um acidente e a minha própria tendência a transitar no plano da culpa, penso que não seria muito. Mas se algo casual como a impressão sobre um filme pode se transmutar, dá um frio na barriga imaginar que a autocrítica ou a autocensura possam se desbotar com o tempo.
Mais do que pelo futurismo, pelas letras sagazes e proféticas, não é injusto concluir que a trajetória de Cantat deveria ser lembrada pelo que não se transmutou, pela constatação de que o Noir Désir já não existe, a Inglaterra já não integra a União Europeia e episódios como os de julho de 2003 permanecem ultrajantemente comuns. Descanse em paz, Marie, boa sorte, Bertrand.








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