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Robe: urubu não come alpiste

Às vezes me pego pensando na motivação das pessoas que passam muito tempo fazendo a mesma coisa. Um diretor de multinacional que recebe dezenas de milhões por ano não hesitaria em se aposentar depois de uns poucos anos, é de se supor. Talvez ele, assim como o gerente modesto e longevo, tenham fundido sua identidade com o trabalho e já nem parem para pensar na vida além da “firma”.

Talvez os Rolling Stones tenham um incentivo econômico que ainda funcione para levar octogenários a turnês intermináveis, mesmo após a anunciada morte do rock. Ou talvez sejam tão consagrados que são movidos pela bajulação incondicional, vai ver como o Paul McCartney, que poderia estar só nadando em glória e dinheiro há cinquenta anos. 

💿

Uns dias atrás, esbarrei em “Desarraigo”, primeira faixa de “Material defectuoso”, disco lançado em 2011, anos depois do meu contato com o grupo Extremoduro. Os algoritmos me trouxeram a música porque, apesar da voz esganiçada e das letras grosseiras, de tempos em tempos revisito alguns sucessos da banda. “Desarraigo”, extensa e com uma introdução inusitada, me colocou de orelha em pé na primeira escuta, empolgado na segunda e, na terceira, instaurou uma fixação temporária. 

A surpresa com a descoberta de um disco novo de treze anos atrás me despertou também a curiosidade quanto ao destino da banda, encerrada meses antes da pandemia. Mas surpresa mesmo foi dar com fotos recentes de Roberto Iniesta – Robe – entre os resultados do Google. Vocalista e encarnação da banda, figurava até então na minha memória como o Iggy Pop ibérico, o Jesucristo García da capa fantástica de “Yo, minoría absoluta”, magriça e com a cabeleira clichê de roqueiro cobrindo a cara. Robe anda bem grisalho, ostenta um rosto menos ossudo e agora, ao que parece, veste camisa.

Minoría absoluta

Fui saber também que seguiu carreira solo e dei com a notícia de que seu último disco, “Se nos lleva el aire”, foi o mais vendido no Natal da Espanha. O articulista de El País observou: “o dado tem mérito, já que é um disco de rock, gênero hoje afastado das listas de sucessos, e é composto de 10 faixas, 5 que passam dos 6 minutos. No total, 57 minutos. Uma estratégia audaz num mercado que exige canções de menos de três minutos. Mas Iniesta joga em outra liga.”

Queriam dizer que aquele senhor continua compondo e cantando rock, e que ainda embala muita gente a despeito da alardeada morte do gênero. Eu continuei a ouvir faixas esparsas do Extremoduro (descobertas havia vinte anos ou mais) apesar das letras às vezes escabrosas, da voz levemente incômoda e dos arranjos meio datados. Achava que era pela potência indiscutível dos registros, e era. Mas não só. Eu estive esse tempo todo sob efeito do gênio de Robe.

💀

Desde então tenho olhado para todo o seu material com mais atenção. Não repassei toda a discografia, mas voltei a discos que conhecia apenas em parte e ouvi algumas faixas pela primeira vez. No processo, notei e às vezes me identifiquei com alguns padrões, recorrências e temas. 

Muitas vezes, por exemplo, Robe canta sobre perdas em perspectiva, fatos próximos o suficiente para ainda emocionar o narrador mas já distantes o bastante para oferecer alguma síntese. Na própria “Desarraigo”, diz: 

"Sé que al destino volveremos a engañar
Porque no se acostumbre a nuestra rareza
Porque nunca más nos vuelva a manejar"

Mas conviver com esses fantasmas e angústias não é fácil, os recursos para se anestesiar são muito mencionados:   

"Me inventé mil maneras de perder la cabeza
Es más sencillo así" (Decidí)

"Bebe a la noche ginebra
Para encontrarse con ella
...
Bebe rubia la cerveza
Pa’ acordarse de su pelo
...
Vuelve a coger la botella
Y pasa las noches en vela" (Standby)

"Ayer bebí hasta jurar
Pero hoy no me levanta ni Dios" (So Payaso)

"Demasiada droga hasta para mí" (El poder del arte)

"¿Alguien quiere comprar algo pa' poder fumar?
Y toser, y toser, y toser, y esputar
Y toser y toser, y toser y flipar" (Menamoro)

"Bebo de una fuente caliente, caliente
Y vuelvo a ver al hada que nunca me abandona" (Puta)

Elaborações e expressões de pesar e desejo também aparecem como forma de lidar com os afastamentos e as perdas. Em letras escritas ao longo de décadas dá para notar a disposição de se redimir, restabelecer-se como possível e começar tudo de novo: 

"Me equivoco una y otra vez
Y te puedo asegurar
Que el paso de los años
No impide que vuelva a tropezar
Ni que me vuelva a romper
Contra otro desengaño" (Nada que perder)

"Ojalá que te hubieras quedado conmigo aquí
Demasiado tiempo sin saber de ti
...
Y ya no queda nada del ayer
Parece buen momento de empezar de nuevo" (El poder del arte)

"Decidí aprender a hacerme yo la maleta para poder vivir" (Decidí)

"Cuando ya no puedo más, saco para respirar
Un ratito el corazón, que lo tengo en carne viva
Sólo un poco de calor, hace que me vuelva la vida
Y lo pongo a secar al sol, escondido en un renglón
Y a deshora, sale un sol alumbrando una esquina
y alegrándome el día" (A Fuego)

"Cuando no estoy contigo, domestico las horas
Y hago que den brincos, y hago que corran" (Puta)

"Desde que tú no me quieres
Yo quiero a los animales" (Extremaydura)

"La vida vino dando volteretas
Los pies al suelo a mí no me sujetan
Que soy viento y me embalo
Y arranco las veletas" (Desarraigo)

 
"Contém poesia"

O ato sexual aparece muitas vezes em referências chulas e passagens sôfregas, como se sua frequência ou intensidade implicassem alguma forma de redenção ou superação dos próprios relacionamentos com as mulheres. Muitas vezes, os versos exprimem um ressentimento que descamba para o que hoje se considera misoginia:

"Y bajé al infierno a ver cómo se cuecen tus besos
Cansado de buscar un trocito de cielo
Lleno de pelos" (A fuego)
 
"Y no me encuentra el día, si no encuentro su boca
Diciendo: ¡venga, venga, que me vuelvo loca!
Y ando entre su pelo, y hay un agujero
Me subo a las estrellas, y me tiro de cabeza" (Puta)

"¡Hoy te la meto de todas todas!
...
¡Hoy te la meto de mil maneras!
...
¡Hoy te la meto hasta las orejas!
...
¡Hoy te la meto hasta el mismo corazón!" (Hoy te la meto hasta las orejas)

"Tírate en el suelo, y vete colocando
De tu entrepierna, quiero beber el caldo" (Buitre no come alpiste)

Por falar na ave típica da Estremadura espanhola, região de origem do Robe, os urubus são recorrentes em suas letras, acompanhados de uma fauna considerável, com destaque para os ratos. 

"Y al animal que más quiero
Es al buitre carroñero" (Extremaydura)
 
"Son nuestras almas son dos versos que se rozan
Nuestros cuerpos como dos cerdos que hozan" (Desarraigo)

Os ratos e urubus atuam aliás como ilustrações da decadência e da adversidade, acompanham o eu-lírico nos piores momentos. Os cães costumam encarnar o espírito marginal e sobrevivente do narrador. 

"y como ratas de basura: Desorden y Soledad
se fueron viéndote llegar.
...
y yo me entreno como un perro
para que le muerda mi canción" (Buitre no come alpiste)

"Tiré toda mi vida a la basura
Y ni las ratas se la comieron" (A fuego)

"Era un perro callejero
No tenía más que venas
...
Su padre le conocía
solo a medias y decía
que su hijo era un mal bicho
y ni la vida merecía" (Perro callejero)

 
Outros tempos

A flora do cancioneiro de Robe também é abundante, a começar pelas bolotas (frutos do carvalho), outro aceno à origem estremenha, com muitas flores como metáforas clássicas e menções às papoulas, provável referência às substâncias de alívio.

Mas a repetição mais intrigante da sua poética é a de momentos de choque, impacto, queda ou colisão:

"Van tan deprisa nuestras almas que se arrollan
...
Dar contra un muro pa' poderlo derribar" (Desarraigo)

"Pensé decirle: más clara la luna brilla, y dar
Contra el suelo otra vez más
Al contacto con la realidad" (Hoy te la meto hasta las orejas)

"Me salgo de mi casa, me estrello contra la acera
...
Salté por la ventana, buscando una liana
¡Árbol va!, y Tarzán al suelo" (A fuego)

"Pues canta otra cancioncita enjuagadora
Y que tenga propiedades demoledoras
Que me derrumbe el alma
Que me derrumbe entero
Que me reviente el alma y que me reviente dentro
...
Choca lo imparable con lo inamovible
Dentro de mi corazón
Y me oigo reventar" (El poder del arte)

Robe não tem uma carreira tão longa quanto os Rolling Stones e, embora os seus discos, em grupo ou carreira solo, às vezes passem semanas entre os mais vendidos e no alto das paradas de sucessos, nunca esteve perto da fama de Paul McCartney. Mistério mesmo é que alguém como ele, em 2023, lance um disco de um estilo que já não se ouve mais, com faixas mais compridas que a paciência das pessoas, sobre os mesmos temas de quando começou na década de 1980, com riffs e arranjos às vezes datados, referências a drogas e versos sobre mulheres em tom que já não se tolera.

É provável que Robe não esteja nem aí para as tendências moderninhas das paradas de sucesso e para quantos minutos as pessoas querem ouvir porque seus rocks são apenas o veículo, o vetor que calhou de estar à mão quando ele começou. Ele não vai ser entronizado na glória mundial mas tampouco vai deixar de ser o Robe essencial: buitre no come alpiste. 

🦅

Enquanto repassava essas gravações, ocorreu-me que suas letras evidenciam um movimento constante de ir ao inferno e retornar, magoar-se e continuar engatando romances, gerir crises e recorrer ao entorpecimento sabendo que o alívio é fugaz. Ele se adaptou à condição de Sísifo de Cáceres, valendo-se de seu “espíritu imperecedero”. Eu, como aquelas pessoas que prometem começar a dieta na segunda-feira seguinte, já passei anos me prometendo viver num horário mais civil no dia seguinte. Até que desisti, um pouco como se também me resignasse à constatação de que urubu não come alpiste.

O último

Robe, que já trabalhou com o pai e vendeu guloseimas num quiosque, fez faculdade de Letras e escreveu um romance, em algum ponto de sua trajetória deve ter concluído que não se livraria de suas fixações e repetições, que o que lhe restava era diluí-las em letras às vezes simplórias, cantá-las junto dos mesmos barulhos dos anos 1990 e tirar o melhor proveito delas porque seus demônios não são os mesmos dos vizinhos, dos colegas de trabalho, não são daqueles que consiga destrinchar em reuniões dos alcoólicos anônimos. A liga em que Robe joga só tem ele mesmo.

Fustigado por reações desproporcionais e sensações diferentes da maioria das pessoas, Robe é, como adiantou no disco, ele só, minoria absoluta. Se nem quem divide com ele uma casa experimenta o mundo na mesma frequência de onda, que importância daria para o estilo musical da moda? 

Por sorte, o seu autoexorcismo em letras rudes, guinchos apavorados e guitarra estridente dá numa prova de vida que persiste no espírito de quem ouve muito além de três minutos. Já disseram que um escritor escreve sempre o mesmo livro. Ele toca o mesmo rock há décadas; há décadas, sem explicação, Standby me volta à cabeça e tenho que reescutá-la, há décadas multidões de velhos e jovens se aglomeram para oferecer os fígados ao abutre de Monfrágue. É longa a vida do Robe. 

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