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Tecnostalgia: MP3


Me gusta mucho lo que hacés!
Te bajaré a MP3!

(Kevin Johansen, "Son del MP3)

Embora os computadores tenham exercido sobre mim um considerável fascínio desde que tive os primeiros contatos com eles, minha relação com essas máquinas foi, até certa altura, muito diferente da atual.

O primeiro computador que tivemos em casa ainda não tinha acesso à internet. A internet mundo afora aliás era, àquela altura, assunto de raros entusiastas. Criança, meu principal interesse residia nos jogos que poderia executar na geringonça e na exploração dos CD-ROMs, as estrelas da época: comportando cada um 700MB de informação, enquanto os computadores domésticos típicos vinham com memória interna de 460 ou 540MB, os disquinhos plásticos eram os baús do tesouro.

Poucos anos depois, a internet se popularizou e o computador tornou-se a forma mais poderosa de comunicação. Algo pelo qual se passava para chegar a informações novas, antes indisponíveis, para conversar com pessoas mundo afora - o IRC (internet relay chat) era o WhatsApp de meados dos anos 90 - e ver fotos de mulheres peladas.

O computador permaneceu então, para mim, um instrumento intermediário, a ferramenta que lia CD-ROMs, fossem de jogos, de enciclopédias ou outros repositórios, pela qual eu passava para acessar algo ou falar com alguém ou que se usava para materializar outros bens: materiais impressos ou os incontáveis CDs gravados, com música ou dados.


O computador foi então, durante muito tempo, um ponto de passagem, algo em que se inseriam discos e se extraíam textos e imagens impressos. O lançamento do Windows 95 talvez tenha trazido o primeiro indício de que eu viria a me interessar mais pelo equipamento enquanto ponto de convergência: o seu "Gravador de Som" permitia capturar sequências de áudio de qualquer fonte, inclusive CDs. Para estranheza de um amigo, então, a ideia de gravar faixas de um CD de música que eu mesmo possuía como arquivos de computador me pareceu fascinante, pelo menos até que eu percebesse que, no formato WAV, então disponível, uma faixa de cinco minutos ocuparia quase 50MB, algo impensável para o armazenamento disponível na época.


Em 1997, com a invenção do formato MP3 por brilhantes "cientistas alemães", essa mesma faixa ocuparia menos de 5MB, o que, aliado ao armazenamento um pouco mais espaçoso dos computadores mais recentes e o lendário Napster - primeiro programa de compartilhamento de música online - instaurou a possibilidade de o computador ser não mais uma via de passagem de discos plásticos mas um repositório musical, em que faixas teriam existência imaterial, como outros documentos e arquivos digitais.

A primeira faixa que baixei foi "Change The World", do Eric Clapton, lançada por aquela época. Ao clicar no arquivo, a música iniciava  sem atraso e o som, para minha surpresa, parecia tão limpo e nítido quanto o dos CDs (diferentemente dos materiais nos formatos RealAudio, também compactos porém de baixa qualidade). Encontrei outras gravações também daquela época: "Realidade Virtual" do Cidade Negra, e "Give Me One Reason", da Tracy Chapman. Cada download concluído por meio das conexões instáveis, através de modens que utilizavam a linha telefônica, era uma pequena vitória, e significava ter à disposição uma faixa de um CD que jamais havia comprado para ouvir sempre que quisesse, indefinidamente. Lembro que a transferência de "All Around The World", do Oasis, com dez minutos de extensão, foi particularmente sofrida.

Logo que juntei três ou quatro músicas, experimentei uma pequena euforia ao ter a certeza de que não pararia por ali, de que aquela prosaica pasta do computador viria a guardar um acervo cada vez maior, o que de fato aconteceu. Era deliciosamente simples e elegante ouvir minhas músicas favoritas sem precisar buscar ou trocar discos numa bandeja barulhenta, era a consagração do computador como equipamento "multimídia" - à sua forma, imaterial, e não como um simulador de outros aparelhos eletrônicos nem veículo de exibição de conteúdo gravado em discos plásticos. Meu sistema de organização dos arquivos consistia apenas em reunir todos numa pasta e nomeá-los com indicação do intérprete seguido do nome da faixa, separados por um hífen.

Eu cuidei e incrementei a minha coleção de música em MP3. Aqueles primeiros arquivos existem até hoje, numa pasta bem guardada, assim como as primeiras amostras legais no formato, que me pouparam de downloads arrastados e foram gratas surpresas. Mas a transição não estava completa. O CD ainda era o artefato cultural cobiçado. Muitas vezes comprei CDs graváveis de qualidade, com estojos de acrílico, como os discos de loja, gravei as sequências de faixas de determinado álbum na exata sequência estabelecida pelos autores e imprimi as capas e contracapas em copiadoras para depois recortar e montar o encarte.

Alguns anos depois do Napster, o Audiogalaxy mostrou ao mundo como fazer compartilhamento de música de verdade: provavelmente sem deixar que os donos escondessem suas coleções dos outros usuários, aquela rede parecia dar acesso a toda a música já gravada na história. Com arquivos obtidos através dela "montei" discos do Frank Black e dos Hoodoo Gurus que eu jamais encontraria nas lojas, conheci o trabalho de Paco de Lucía, fiz minhas primeiras explorações de choro e jazz.

Audiogalaxy, o ápice inquestionável do compartilhamento de música

O CD ainda era o formato-alvo porque os micro-systems, portáteis e sistemas de som automotivos ainda não tocavam música em MP3. Eu vivia, então, numa transição, um período híbrido: zelava e ampliava minha pasta de MP3, fazia backups em CD-ROM, mas tinha como efetivo tesouro a coleção de CDs com capa e estojo, fossem os comprados em lojas, fossem os montados por mim mesmo. Também já usava o computador para escrever, mas guardava com cuidado meus cadernos de anotações. Tinha outra pasta no computador com centenas de clássicos da literatura, mas cobiçava de fato os livros de papel, e via os arquivos digitais como almas penadas, esperando aparelhos como o Rocket eBook, então protótipos, sobre os quais eu lia como fábulas japonesas.

Foi talvez uma conjugação de fatores como a popularização de telefones celulares que tinham conexões compatíveis com fones de ouvido comuns e bandejas de ampliação da memória interna via cartões SD e a aquisição, pela Apple, de um software que exibia os arquivos se música a partir das capas dos discos respectivos, num elegante carrossel, depois integrado ao iTunes, que me levou a concluir a transição para o formato digital. A partir daí, o MP3 passou a ser o formato principal, versátil, portátil, e os CDs é que se tornaram veículos fugazes de disponibilização de um punhado de faixas que, uma vez digitalizadas, o tornavam uma espécie de envelope roto ou seringa usada.

Cover Flow: muito mais legal do que qualquer prateleira de CDs

Quase dez anos depois de começar minha coleção em MP3 eu decidi concentrar tudo de que dispunha naquele formato: converti todos os CDs que tinha e os guardei numa caixa. E, para que todas as informações aparecessem corretamente no telefone e no iTunes, passei a preencher os metadados completos das minhas quase cinco mil faixas, com a ajuda de um fantástico programinha chamado Mp3tag, capaz de extrair informações de bases de dados online e inseri-las em cada arquivo.

Mp3tag, pequeno notável

A partir daquele ponto, o computador se consolidou como ponto de convergência dos meus bens talvez mais preciosos, guardando não apenas a coleção de música como meus textos e anotações, revistas em quadrinhos digitalizadas e fotografias, também avançadas na transição para o formato digital. O computador deixou de ser um caminho para se obter uma informação ou extrair algum impresso e firmou-se como o depositário e bibliotecário para todos os meus acervos. Consequentemente, o meu cuidado com a manutenção e o perfeito funcionamento da máquina intensificou-se, bem como a preocupação em fazer backups periódicos. 

Talvez o ápice da minha experiência de ouvir MP3 no smartphone tenha se dado em torno de 2010, quando um aplicativo cujo nome lamentavelmente não consigo lembrar vasculhava o acervo disponível na memória do aparelho e, consultando uma base própria de metadados, sugeria playlists automáticas baseadas em uma determinada canção ou de "humor" parecido, muito melhores do que as do Genius, da Apple. A interface do programinha - que logo foi adquirido por algum dos gigantes do streaming - não era grande coisa, mas as sugestões eram surpreendentemente certeiras, baseadas em semelhanças nos ritmos de batidas por minuto. Em 2013 ou 14, aliás, os serviços de streaming aportaram em peso no país e, já dispondo de planos de dados um pouco mais espaçosos, resolvi experimentá-los.

Minhas primeiras experiências com o Deezer e o Spotify foram cautelosas e desconfiadas, até porque eu dispunha de uma coleção cuidadosamente acumulada ao longo de muitos anos e meticulosamente organizada e catalogada. Os serviços eram de fato práticos e eficientes, e o download para escuta offline de fato funcionava. Lembro-me de quando "Tempo Perdido" invadiu minha cabeça, como me acontece com frequência e, no aeroporto de Brasília, baixei-a para o telefone por meio do Deezer, para depois ouvi-la inúmeras vezes ao longo do voo. Havia claros indícios de que as coisas estavam para mudar.

Experimentei o Spotify logo no início e, também de origem europeia, o serviço inicialmente ignorava a principal indústria musical do mundo depois da americana. O melhor que os seus algoritmos da época conseguiam fazer era sugerir gravações portuguesas, presumivelmente compreensíveis por aqui. A rudeza da associação acabou porém por me trazer excelentes surpresas, em especial uma amostragem do rock português contemporâneo, com Trêsporcento, Diabo na Cruz, Doismileoito, B Fachada, Tiago Bettencourt, entre outros. Como não era de reescutar sempre as mesmas coisas da adolescência, aquelas "descobertas" me pareciam impagáveis, preciosas.

Eu ainda estava ancorado aos hábitos anteriores e, quando me entusiasmava bastante com determinada novidade, buscava as faixas em MP3 pela internet e, seguindo o rigoroso método de catalogação de antes, incorporava-a ao meu acervo. Até hoje, escutar "Cascatas", do Doismileoito, devidamente eternizada em meu arquivo, me arremessa diretamente de volta a 2014. Tendo em vista que nunca tive talento para montar longas playlists, as listas oferecidas pela curadoria do Spotify, somadas à experiência enriquecedora de ser apresentado a ótimos conteúdos novos, tornou-me não só um usuário cativo mas praticamente um dependente dessa espécie de serviço. Era provável que, assim como as caixas de CDs de anos antes, os vários gigabytes de MP3 viriam a tornar-se artefatos obsoletos, fetiches de nostalgia.


Durante essa empolgação inicial, que se misturava ao colecionismo de antes, tratei de guardar faixas do  Ciclo Preparatório, em especial "Lena del Rey", do belíssimo videoclipe, e, como o Spotify rapidamente ampliou suas referências, enriqueci meu acervo com canções dos inspirados Silva, Castello Branco, e dos Boogarins, entesourei o belíssimo disco "Morning Phase", do Beck, e a empolgante "Rent I Pay" do Spoon. A ideia foi, durante algum tempo, aproveitar a conveniência do serviço mas também me valer de fontes de licitude controversa para perenizar, em minha biblioteca, o que fosse transcendente.

A disposição museológica, porém, diluiu-se à medida em que eu explorava estilos, grupos, artistas e fronteiras novas, vindas dos mais variados lugares e contextos. A facilidade e a disponibilidade dos acervos aparentemente infinitos me fizeram esquecer, temporariamente, meu dever de arquivista. Foram contudo os próprios serviços de streaming que me fizeram lembrar do risco adiante: o brilhante e divertidíssimo álbum "Marinai, Profeti e Balene", de Vinicio Capossela, subitamente desapareceu dos serviços de transmissão em algum ponto de 2016 ou 17. Confiante em meu sistema, percorri as fontes habituais e consegui umas poucas faixas (dentre as quais "Polpo d'amor", por sorte), mas obviamente algo havia mudado: foi dificílimo conseguir essas canções avulsas, os vastos catálogos de discos e discografias completas de antes haviam desaparecido dos canais habituais.

😟

Havia vaticinado a um amigo: o streaming vai esvaziar a pirataria em MP3, porque é irresistivelmente conveniente. E então, sem conseguir acessar um disco a que os próprios sites me haviam apresentado, tive meu primeiro tropeço nas intermitências contratuais entre os serviços de streaming e os detentores de direitos autorais, um risco que a presença vacilante do disco "Manual" (2015), dos Boogarins, nos principais serviços de difusão, já havia insinuado.  

Mais recentemente, num idílico fim de semana de inverno num sítio, não consegui fazer com que meu smartphone se conectasse a um alto-falante com interface Bluetooth, provavelmente porque, em casa, já o havia pareado com outro dispositivo idêntico. Descobri, então, que o rádio ainda existe e que, sem a obrigação de agradar a públicos tão heterogêneos quanto antes, muitas emissoras desfiam seleções interessantes. E redescobri o valor dificilmente mensurável de dispor de uma coleção tão cara e variada no computador portátil, alheia a contratos, sinais e conexões. Ao convocar o programa de música, reencontrei meu velho acervo listado por ordem alfabética e deparei com "A Broke Down Melody", uma trilha sonora, no início da lista. Redescobri então, quinze anos depois, um disco leve e delicioso, guardado, organizado e disponível para fruição potencialmente eterna, que embalou uma refeição comparavelmente prazerosa entre pios de aves silvestres e mugidos distantes.

Há algumas semanas, o disco "Traces of You", da Anoushka Shankar, do qual eu só conhecia a faixa-título, sacudiu-me com sua beleza e potência ancestral. Apaixonado e marcado pela recente experiência rural, eu tentei novamente localizar uma cópia "definitiva" do álbum, mas não havia nada. Provavelmente há redes subterrâneas de troca de arquivos e canais obscuros mas, para o usuário médio, só restam torrents abandonados e fragmentos imprevisíveis no YouTube. Como eu suspeitara, a partilha de MP3 acabou: quem baixou, converteu e gravou, bem, quem não, perdeu.

😞

(Por curiosidade, pesquisei "A Broke Down Melody" nos serviços que utilizo e descobri uma nova categoria de limbo contratual: o disco é encontrado e a lista de faixas é exibida, mas algumas estão disponíveis, enquanto muitas não.)

😞

👍

Ironicamente, na Alemanha, país de origem do mágico formato MP3 e do possante Mp3tag, ainda se mantêm, compram e ouvem CDs correntemente - sim, as pessoas compram discos, guardam-nos em móveis apropriados e ouvem-nos em sistemas de alta definição sonora.

Provavelmente foi um lampejo de ingenuidade acreditar que eu poderia conter toda a música num repositório blindado: pessoas que descobrem e reouvem canções de que gostam no rádio, nos bares, nos ônibus certamente veriam meu esforço como a labuta de alguém insano. Assim como a palavra ocupou paredes de pedra, tabuletas de argila, retalhos de couro de cabra e bobinas de papiro, atravessando o fluxo do tempo em cima do que estivesse disponível, a música toca por onde encontrar caminho, alguém paciente me explicaria.  

Enquanto não me contamina essa sabedoria, prossigo, no itinerário da curiosidade e das revelações, tentando resgatar a consciência de que não haverá solução única e muito menos definitiva para armazenar o acervo dos estímulos e recordações que nos movem ao longo dos anos.

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