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40: a morte na cama


Tant de nuits alité
Que mon coeur a cessé
De me donner la vie
Si loin de moi
Si loin de moi
Si loin de moi

Des armées insolites
Et des ombres équivoques
Des fils dont on se moque
Et des femmes que l'on quitte
Des tristesses surannées
Des malheurs qu'on oublie
Des ongles un peu noircis
Des ongles un peu noircis
(...)
Mon ange, je t'ai haï
Je t'ai laissée tuer
Nos jeunesses ébauchées
Le reste de nos vies

(Tant de nuits, Alain Bashung)

Há alguns anos, pensei em como seria quando alguém com quem me relacionei intimamente viesse a morrer. Sim, eu pensei nisso, e previ inclusive que seria um acontecimento marcante. Mas se pensar antecipadamente sobre as coisas tem às vezes o efeito de torná-las menos marcantes, não fui profético o suficiente para adivinhar que viria a dar com essa morte de maneira tão casual.

No primeiro contato com Lia, indicativo de um torvelinho insuportavelmente atual, havia por paradoxo algo museológico: ela encarnava um ângulo retrógrado, personificava fantasmas do campus, de uma época idealizada. Uma foto sua num familiar corredor da faculdade de filosofia foi mote de conversas preliminares. O cachorro que persegue o próprio rabo: lá estava eu, correndo adiante com a cara voltada para trás, a tentar fugir de um presente duro.

🌅

Lia não se espantou com minha manobra de coruja que, na verdade, não tinha condições de perceber. Eu é que estranhei quando, alguns anos após nosso último contato, dei pela falta de seu nome em minha lista do WhatsApp. Intrigado, pesquisei seu nome no Google mas, nas primeiras telas, não encontrei mais do que os links habituais para artigos e currículos acadêmicos. A indicação de um arquivo em PDF, porém, me chamou a atenção pelas primeiras palavras, extraídas pelo mecanismo de busca: “Dedico este número à memória de Lia Rugnetta…”.

Abri o arquivo, um editorial de uma revista acadêmica tradicional. A autora, aparentemente professora da universidade mais prestigiada, havia dedicado aquela edição à memória de Lia, cuja pesquisa não teve a chance de ressoar em tal data comemorativa. Em tom marcadamente humanizado, ela menciona a generosidade da colega ao dar-lhe crédito por conversas que antecederam um artigo que Lia publicou durante o açodamento da pandemia - contexto, como a professora bem assinalou, presumido como passageiro à época. Menciona, ainda, a brutal impossibilidade de prosseguir o intercâmbio e uma enorme saudade.

Um mundo melhor?

Eu havia lido o artigo de Lia, embora não tivesse prestado atenção à dedicatória de rodapé à professora, alguns anos antes, no início dos chamados confinamentos, e me lembrava do tom que pressupunha a fugacidade das restrições, a pontualidade do estado de emergência. A professora sutilmente evocou a força vital de Lia, seu entusiasmo pela vida a despeito dos tumores que, em suas próprias palavras a mim, forçavam-na a (re)fazer o mestrado quando já deveria estar por obter o doutorado.

🏘

Por mais que as palavras fossem claras, sucintas e impecavelmente articuladas, eu, como aqueles que se perdem em “negação”, senti necessidade de mais confirmação. O editorial continha informações sobre a autora, sua origem e qualificação, além de um endereço de e-mail. Não um e-mail da universidade, mas do Gmail. Então me atrevi a me apresentar e a pedir informações, muito embora ela tenha sido suficientemente clara quanto à morte da amiga e ao impacto pessoal do acontecido sobre si.

Tenho sérias dúvidas de que venha a receber uma resposta e, enquanto isso, caio em todos os lugares-comuns sobre a morte, a começar pela ideia de que, assim como apaixonar-se sempre tem algo de descoberta, ninguém caleja em relação ao fim da vida.

🌚

Por um instante, senti-me um canalha por não haver correspondido aos seus sentimentos (“você mexe comigo”), embora nada entre nós tenha sido contaminado por insinuações românticas. Condenei a minha própria insensibilidade por não ter adivinhado o peso histórico de tudo o que fazia no seu penúltimo dia de vida.

E passei por todos os demais lugares-comuns das reações à morte:

Lembrei-me de como era inconveniente tê-la em casa na hora que me vinha a fome, e ter que oferecer-lhe meu lanche, enquanto ela sempre comentava de delícias que tinha à disposição em casa e que não “atinara” de trazer. Lembrei que ela, contudo, elogiou minhas bruschettas. Eu me irritei com aquilo, mas agora ela está morta e não vai me irritar nunca mais.

Eu me incomodei com a sua dificuldade de termorregulação, seu calor excessivo, sua transpiração, seus cheiros menos suaves do que os de outras moças, e agora ela está fria, seca e enterrada.

Ela contou que corrigia os nomes de cidades espanholas grafadas em português em trabalhos de alunos - trabalhos em português! - para minha imediata irritação, e insistia em utilizar “desde” no sentido castelhano. Agora ela nunca mais vai despertar meu senso do ridículo.

🌅

As reações que ela tinha a mim eram bem diferentes: A certa altura Lia disse que eu “mexia com ela”. No início da pandemia, e durante a repentina disponibilidade exagerada para trocas de mensagens, ela quis acreditar que aquele contexto nos havia “aproximado”, mas não era o que eu sentia. Ela disse que me viu na rua e, diante do meu distanciamento, preferiu não me abordar. Quando lhe contei do relacionamento que havia iniciado, ela, para meu alívio, replicou imediatamente: “ficamos por aqui”.

Mas não ficamos. Eu aparentemente continuei a “mexer com ela”, ela continuou a me contactar e, a certa altura, brincou que eu acabaria por bloqueá-la. Simpático à ideia, acabei bloqueando seu número. Um par de anos depois, quando, por alguma razão insondável, resolvi desbloqueá-la, era tarde demais: ela havia morrido alguns meses antes.

Ela morreu, não vai mais ser possível lamentar a torta de frango que ela podia ter trazido mas não trouxe, não vou mais fazer careta com o vinho tinto excessivamente pesado que ela trouxe pela única vez, uma noite em que fazia calor. Só vou poder especular sobre a tendência dela a rir de todas as minhas piadinhas: eu era engraçado ou apenas “mexia com ela”? 

Lia fazia planos, lamentava os tumores que atrasaram sua trajetória acadêmica como se visse a própria vida como um longo caminho de ferro, mais ou menos pré-determinado, sobre o qual ela avançaria com segurança. Morava com os pais, não tinha um trabalho fixo e era bem-humorada e politizada enquanto morria. Eu estava com a “vida feita”, morava sozinho num imóvel amplo e me sentia angustiado, ansioso. Eu era o mórbido da história, e é ela que está morta agora.

🏞

Ela gostava de ver televisão aberta para ter o que comentar no Twitter, poder condenar o governo durante a pandemia no Twitter; assistia a partidas esportivas e aos programas de calouros para comentar no Twitter. Lia era simpática à cultura popular e se divertia com o brega, surpreendeu-se quando eu, metido a erudito, disse que achava o Sidney Magal um barato e que vibrava com Banzeiro, de D. Onete. Ela ria a cada vez que eu a acusava de cachonda, dificilmente vou ter outra oportunidade de usar essa palavra que ela achava tão engraçada.

Ela quis montar uma lista conjunta de recomendações de música, mas eu recusei, porque implicava com sua tendência a indicar gravações muito antigas. Eu fingi pouco interesse num artigo sobre tradução, publicado na Piauí, que ela me mandou, para evitar que o assunto “rendesse”, mas era um texto fascinante. Agora não vai mais haver artigo nem lista nenhuma, Lia deixou de ser. 

Lia me trouxe um pão-de-mel recheado quando passou perto de minha casa, num dos primeiros semiconfinamentos, um pouco depois de ser vacinada, antes da maioria, em razão de sua condição de saúde. Estacionou o carro verde e tentou manter o canal entre nós aberto numa calçada vazia. Não vou mais me sentir aliviado pela desculpa (planetária) que havia calhado para não recebê-la em casa. 

Aquele carro, aliás, ela dividia com Leandrinho, o irmão mais novo. Percebeu que eu ria de seus resmungos sobre as peripécias do rapaz e passou a carregar a mão em suas crônicas depois que descobri, entre gargalhadas, que ele levava o diminutivo por ter o mesmo nome do pai mas na verdade media 1,96 m. Recebi uma foto histórica de Leandrinho operando um aspirador de pó pela primeira vez aos 24 anos, durante um intercâmbio internacional. Mas nunca vou saber se Leandrinho voltou a adverti-la para não “dar rolês” com o automóvel só porque ele tinha abastecido trinta reais de combustível.

Ela gostou quando elogiei seus cabelos soltos em longas ondas, disse que havia antes recebido elogios ao seu nariz. Ela depois deixou-os crescer, ficar ainda mais bonitos, mas aí já não me cabia tocá-los e puxá-los. E agora não vou mais poder puxá-los nem tocá-los: são essas as coisas que sempre pensamos quando alguém morre e se surpreende.

Não vamos mais falar sobre a Espanha, sobre gírias catalãs, sobre as “papas bravas” que eu quase fiz sem querer, quando fui obrigado a cozinhar, sobre calimocho e o museu Rainha Sofia - segundo ela, autodeclarada “ibérica”, superior aos franceses. Toda aquela experiência culminou numa morte prematura, foi de certa forma em vão, acabou-se em definitivo.

Papas quase bravas

Lia refletiu, discutiu, bradou contra os descaminhos da reação estatal à pandemia, refletiu sobre aquele período num artigo culto e circunstanciado, e não conseguiu ver o mundo sair daquela crise.

Aquela crise, o relativo pânico, as restrições e as dúvidas do início, é sobretudo isso que me vem à ideia quando penso em Lia. Seus imerecidos entusiasmo e generosidade em relação a mim se misturam, em minha recordação, à generosidade, à abertura, à comunicatividade de tantas moças e mulheres fantásticas com quem dividi aqueles meses iniciais deste novo mundo.

Algo distinto de tudo que já havia experimentado se alinhou naquele tempo. A desobrigação do deslocamento ao trabalho, a vida por meio do computador e do telefone, o afastamento extremo, o questionamento global de prioridades e da forma de viver e estar no mundo: a vida contemporânea era posta em xeque enquanto nos comunicávamos profundamente, intimamente, mundo afora, abstraídas as limitações de tempo e de espaço.

Durante a pandemia, encontrei "gélules" da mantrisse

Como fiz ao longo de toda a vida, tentei me agarrar a esse tempo peculiar, eternizar esse momento de reflexão e de intimidade remota, tentei preservar em vácuo e criogenia o período em que o planeta e as pessoas se aproximaram da forma de estar que eu escolho para mim: devagar, refletida, introspectiva, medida, consequente. Estranhamente, ver o fluxo de fotografias daquela época migrar de poses ridículas e viagens manjadas para visões de janelas e de pratos de comida me enternece.

Mantenho contato com o máximo possível de pessoas mundo afora, testo os canais de comunicação periódica e sistematicamente, monitoro as notícias buscando indícios de que algo daqueles meses e anos vai se incorporar a esta vida. Tento guarnecer este meu museu um pouco como um pedinte, e não desprezo nenhum fragmento daquele período singular.

(sem manipulação) 👨🏻‍🚀👽

Mas quando fui atrás das recordações de Lia, era tarde demais. “Tarde demais” e “acabou”, os próprios chavões mais manjados da morte conhecida com atraso: eu asseguro, eles me parecem visceralmente verdadeiros e eloquentes. Aquela oportunidade de refazer o mundo presos em casa dá todos os sinais de que se esvaiu, o meu museu é caso perdido e está, infelizmente, desfalcado de Lia.

Lia, com quem testei os limites da minha libido, me ensinou a mortalidade do meu sexo. Eu provavelmente não faria nada diferente quanto a nós mas, evocando o último clichê da morte, admito que gostaria de ter dito a ela algumas das coisas que registro aqui. Quem sabe trocar mais alguns comentários sobre os últimos artefatos da cultura brega, discutir aquele artigo pandêmico, arrancar, com sorte, mais alguma risada forçada.

Talvez, se tivesse remexido minha lista de contatos alguns meses mais cedo, teria tido tempo de confessar: à sua maneira, você também mexeu comigo, Lia.

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