Pular para o conteúdo principal

Tecnostalgia: Quake


And my computer's processor it was so quick,
boy was I glad I bought that 486.

(The Night Before Doom, de Hank Leukart,


Quando o primeiro computador chegou à minha casa, Doom II ainda era bastante recente, sobretudo se considerados o ritmo um pouco mais modesto dos lançamentos da época e o impacto duradouro desse jogo sobre o público e a indústria em geral.

Doom foi o jogo que “fez a minha cabeça” na adolescência. Os jogos de console de antes não chegaram nem perto de me envolver daquela maneira, os de computador que vieram depois não foram beneficiados pela “idolização” entusiasmada de adolescente. Eu treinava Corel Draw reproduzindo o logotipo tridimensional e extrusionado de Doom, instalava o jogo antes do Windows e do Office quando formatava uma máquina.

Entre os Dooms e Quake houve Dark Forces, Full Throttle, Descent, Warcraft II, Duke Nukem 3D etc. Nesse período os “kits multimídia” com leitor de CD-ROM se popularizaram e surgiram até revistas especializadas em jogos para computador, vendidas com discos de amostras encartados. Então, quando uma delas trouxe o shareware de Quake e o destacou como “o sucessor de Doom”, eu mantive um pé atrás quanto ao que me parecia sensacionalismo. O primeiro amor da adolescência, afinal, não deixa “sucessor”.


Quem acreditaria nessa revista?


26 anos depois, ao finalmente ler Masters of Doom, voltei a pensar em Quake e repensei minha relação com o jogo. Provavelmente, passei muito mais horas jogando Quake e vibrando com distintos aspectos seus do que Doom e Doom II somados. Para extrapolar a metáfora romântica: se Doom guardou a mística do primeiro amor adolescente, Quake permanece como marco de minha educação sentimental.

Kit multimídia: o presente quente de 1995

Mas a verdade é que Quake era, de fato, o sucessor de Doom: concebido pelos mesmos criadores, resumido pela mesma impaciência com relação a introduções, contextos e interlúdios audiovisuais: seja em Doom ou em Quake, você começa com uma arma na mão, sai andando e atirando em criaturas horrendas. Eu quis muito que meu primeiro amor tivesse uma história envolvente: li os FAQs, as páginas amadoras da web da época, mantidas por fanáticos, prestei atenção a todos os elementos textuais do jogo. Cheguei a encontrar um poema sobre a véspera do lançamento de Doom nas BBS de 1995, também escrito por um jogador entusiasta, mas havia muito pouco.


Um dos criadores do jogo, o jogo em disquetes e o livro sobre eles


Felizmente, como seu antecessor, Quake dispensa explicações e introdução. E impressiona pelos avanços técnicos marcantes, embora só alguns anos o separem de Doom. Para além dos detalhes técnicos, o principal é: todos os elementos de Quake são tridimensionais, poligonais. Os monstros têm perfis e costas e todos os ângulos visíveis, as colunas, portais e paredes interagem com a luz, de maneira reconhecível. Saramago uma vez comentou da ocasião em em que se deu conta de que, para conhecer algo, é preciso dar-lhe a volta. Em Quake, o jogador pode dar a volta a todas as coisas, e por isso elas existem.

Ele existe

Eu me lembro de me ver, à época, às voltas com recordações ou sonhos de corredores escuros e labirínticos, de tentar me lembrar de onde eram. E eu não havia de fato estado nesses lugares, que aliás não eram lugares, eram cenas de Quake. Nesse jogo, os gráficos não eram perfeitos e nem sempre detalhados, mas tudo ostentava uma existência sólida. O jogador deixava de lidar com elementos gráficos, nós lidávamos com salas, calabouços e saguões que se revelavam quando girávamos o ângulo de visão para cantos e tetos.

Este, aliás, é um dos grandes saltos que o jogo inaugurou: até Doom, jogava-se com o teclado. Os direcionais guiavam o personagem, conduzido com a mão direita, enquanto a esquerda lidava com os disparos, saltos e eventuais esquivas. Posicionar a arma no ponto horizontalmente correto era suficiente para acertar o inimigo, ainda que estivesse acima ou abaixo no eixo vertical. Jogar Quake dessa maneira era possível, mas muito mais difícil e visualmente pobre. A técnica agora consistia em "tracionar" o personagem para frente ou para trás com a mão esquerda e utilizar a direita para controlar o mouse, com seu movimento em 360°, adequado ao mundo tridimensional. O botão do mouse passou a fazer as vezes de gatilho.


No futebol, diriam: "o jogador precisa aprender a levantar a cabeça"

Quake pode ser visto como o ápice do mundo sombrio que começou a se criar com Wolfenstein 3D, dos mesmos criadores. Doom, com seus corredores 3D e luz variável conforme a distância, já era bastante imersivo, mas os adversários e outros elementos gráficos ainda eram bidimensionais, como representações de papelão postas de pé. Em Quake, o mundo semi-cartunesco de Doom torna-se palpável, como se os personagens de um desenho animado finalmente tomassem vida num filme live action.

Primórdios

Inaugurada pelo tema pesado e sombrio de Trent Reznor, a trilha sonora de Quake é densa e macabra. Os efeitos sonoros são perfeitos: cada disparo induz uma pequena satisfação sádica. Talvez os monstros de Quake não sejam tão inspirados quanto os de Doom, mas eles existem, tem formas sólidas, aparecem à sua frente como criaturas de volume e peso. Os cães de Wolfenstein 3D são homenageados por assustadores dobermanns rottweilers de bocas vermelhas e, debaixo d'água, até piranhas enfezadas vêm tornar sua vida mais difícil. Se o mundo de Doom tinha ares de ficção científica nerd, os castelos de Quake, com suspiros satânicos e grunhidos abafados vindo de não se sabe onde, são efetivamente góticos e sinistros, sem resquícios de caricaturas adolescentes.


Corredores, cachorros e caixas de NIN (9-inch nails), munição de algumas armas e homenagem a Trent Reznor

Quake tinha vários episódios que compunham uma chamada "campanha", individual e independente da internet, algo ainda muito importante na época. Mas ele veio a mudar o mundo com seus bots, jogadores humanoides que simulavam outros humanos, e suas aprimoradas partidas competitivas entre jogadores online. Se Doom já tinha partidas online (deathmatches), Quake se beneficiou de uma internet evoluída, permitia que cada um treinasse desconectado, com os bots e, principalmente, era um ringue totalmente tridimensional.

Quake tinha um pé no mundo do shareware e das BBS, como seu antecessor, cumpria a obrigação de proporcionar uma experiência individual e offline, mas engendrou uma transição crucial: o jogo de tiro deixava de ser como os outros - o homem diante da máquina - para se tornar um esporte, um conjunto fixo de regras num determinado espaço onde a destreza e a competitividade dos jogadores se mediam diretamente. Se assistir a Rambo pode ser um barato para muita gente, ainda muito melhor será, para outros, jogar paintball com gente do mundo inteiro, a qualquer hora do dia, utilizando as próprias armas do filme e em seus cenários.

Li muitos desses procurando histórias sobre Doom e Quake


Voltar aos mapas favoritos e me confrontar com jogadores parecidos - fossem pessoas mundo afora ou simuladas por bots - em partidas rápidas era uma experiência quase desportiva, limitadas no tempo e qualificadas por placares quantitativos, sem resquícios das pretensões narrativas da campanha individual. Nesses embates competitivos, certamente passei mais horas do que nos corredores pré-fornatados de Doom. Muitos anos depois, reatei-me com batalhas efêmeras em Blitz Brigade (que me perdoem os puristas), nas quais obtinha recompensas imediatas em partidas essencialmente esportivas.

O legado dessa transição é palpável: Quake III, sucessor distante do mundo satânico-medieval do primeiro, descartou de vez a ideia de campanha individual, apresentando-se como uma arena, um ambiente e um meio para que usuários do mundo inteiro travem suas próprias batalhas.



Quake está bem vivo hoje, seja literalmente, entre os muitos jogadores de sua arena, seja entre os inúmeros MMOG de tiro que atraem quase todos os adolescentes, integrados em cenários 100% online. Do shareware em máquinas modestas até apoteóticas batalhas globais, Quake operou transições épicas. Hoje, sob risco de pieguice, me ocorre que, aos 40, pensando sobre um jogo que conheci aos 13 ou 14, uma certa habilidade que ele já proporcionava em seus corredores angustiantes é das raras que adquiri em todos esses anos: dar a volta às coisas para tentar apreendê-las um pouco melhor.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Preto n(ã)o branco

Angola, Congo, Benguela Monjolo, Cabinda, Mina Quiloa, Rebolo   Aqui onde estão os homens Dum lado cana de açúcar Do outro lado o cafezal Ao centro senhores sentados Vendo a colheita do algodão branco Sendo colhidos por mãos negras (...) Eu quero ver Eu quero ver Quando Zumbi chegar O que vai acontecer   ( Zumbi , Jorge Benjor)   Este ano celebramos (ou pelo menos folgamos) o primeiro Dia Nacional da Consciência Negra. Controverso como outras datas desse tipo, inclusive entre os negros, o feriado serviu de qualquer maneira para trazer à tona artigos e discussões sobre personagens importantes da história do Brasil.   ✊🏿   Uma é requentada de tempos em tempos: o teórico “embranquecimento” de Machado de Assis. Ainda que às vezes se mencione como o país funcionava na época e o racismo pseudocientífico do século dezenove, geralmente é destacado o silêncio do autor e os apuros de pessoas próximas sobre a questão. A sugestão é sempre a de que ele teria feito livre opç...

O cabra ainda está aqui?

Levántate y mírate las manos Para crecer, estréchala a tu hermano Juntos iremos unidos en la sangre Hoy es el tiempo que puede ser mañana   (Victor Jara, 'Plegaria a un labrador')   Era ainda na época da TV a cabo que assisti e fiquei fascinado por Edifício Master . Faz tanto tempo que, ao ouvir falar de Cabra marcado para morre r (resgatado por ocasião do aniversário de 60 anos do último golpe militar logrado), demorei a associar o nome do diretor. Ao assistir a Cabra…, porém, os paralelos que surgiram não tinham a ver com o outro documentário de Eduardo Coutinho e sim com o bem mais recente Ainda estou aqui e as reflexões sobre a obstinação golpista dos militares brasileiros, recentemente confirmada em alta definição .  Ligas camponesas Com relatos de primeira mão e provas materiais da truculência paranoica pós-1º de abril, Cabra… é de certa maneira uma contraparte rural do relato de Marcelo Rubens Paiva. Em lugar da constância narrativa deste, porém, o documentário co...

Laird Hamilton: obsessão

Ser feliz Es beber el mar, beber el mar (P. Suárez-Vértiz) O tubo é o lugar sagrado dos surfistas (L. Hamilton)   É curioso que Laird Hamilton tenha sido empurrado para a fama como Lance Burkhart, o surfista não só competitivo como inescrupuloso e petulante de “North Shore”, sucesso repetido muitas vezes nas sessões da tarde como “Surfe no Havaí”. Numa cena crítica, ele puxa a cordinha do herói e rouba a sua onda, mas é flagrado por Chandler, um “surfista de alma”, das antigas, modelador de pranchas e também fotógrafo. Waterman Ele chegou a ser associado a Lance na vida real, como os atores que fazem os vilões das novelas. Mas na verdade não gostava de campeonatos. Segundo ele, pelo desconforto com a ideia de ser avaliado por uma banca. Segundo seu pai, por não saber perder. Pai de consideração, aliás, já que o de sangue abandonou a mãe ainda grávida dele. Take Every Wave , o excelente documentário sobre a sua trajetória, abre falando de sua mãe, sobre quem existe farto material, i...