Foi em 2008 que Alain Bashung entrou em minha vida, um pouco antes de encerrar a sua. Provavelmente conheci o nome por meio de sua interpretação de Tango funèbre do Jacques Brel (de letra brilhante, aliás) e fiquei intrigado pela voz sombria e pela execução taciturna. Daí não demorei a esbarrar em La nuit je mens e não deixei mais de escutá-lo regularmente.
O nome nos antigos arquivos de MP3 inevitavelmente me remetia a Matsuo Bashō. Mais tarde, eu descobriria que se tratava também de um poeta, porém que não escrevia sobre a neve, a relva seca nem rãzinhas, mas frequentemente sobre relacionamentos convolutos e noites espiraladas.
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| tsuki hana mo / nakute sake nomu / hitori kana | Que lua, que flor / nada, bebo umas doses / aqui sozinho (1689) |
Bastaria o título La nuit je mens (A noite eu levo) para me fascinar, mas há muitas razões para gostar dessa faixa cheia de acertos. Já na primeira estrofe, a nostalgia de um romance que começava na estação balneária é concluída com o verso "histoire d'eau" (história de água), em homofonia intencional com o título do romance Histoire d'O.
Na segunda, a identificação foi evidente com "passei a estação nesta caixa craniana", seguida da obsessão ainda mais explícita em "teus pensamentos, eu os fazia meus". É no refrão mesmo, porém, que a canção entra em minha vida para não sair mais: "tenho nas botas montanhas de perguntas / onde ainda subsiste teu eco", tradução lapidar do desespero investigativo que um rompimento não previsto nem desejado costuma provocar.
É esse também o verso que melhor evidencia que "levar a noite" não descreve a intenção pretensiosa de conduzi-la, mas sim que ele leva a noite em si, inclusive à luz do dia, quando "toma trens planície adentro", por exemplo.
O videoclipe da música confirma que o eu lírico tenta se curar nas altas horas, como todos que, nas imagens, perseguem algo noite adentro. Por uma janela que remete a Perec e desvela a coxia da boemia, os notívagos sentam-se no vaso mais que tudo, transam narcóticos, fogem, curam-se, socorrem-se, escondem-se. Copulam, buscam seus remédios de um dia debaixo de saias, embelezam-se, tocam-se, trocam golpes e encontram momentos de ternura.
Enquanto isso, de sua própria janela - que não por acaso é a mesma - Alain queima seus "clopes" com cara de quem irmana com cada um daqueles perdidos que se sucedem no banheiro ordinário.
E os cigarros já haviam feito seu estrago quando, em 2008, conheci o recém-lançado Bleu pétrole, com faixas excelentes (e videoclipes marcantes), inclusive Vénus, Sur un trapèze e um retorno à temática noturna com Tant de nuits, que contém "exércitos insólitos / e sombras equívocas / moças de quem zombamos / e mulheres que deixamos", suficiente para confirmar minha identificação com a sensibilidade do autor.
Antevendo a derrota para o câncer de pulmão, Alain Bashung parece ter tratado de enriquecer o seu legado com um disco inspirado. Suas letras são viscerais mas suficientemente elaboradas para pararem de pé literária ou musicalmente, com versos inusitados e intrigantes como a boa poesia.
O último estertor foi intenso - paralelo à quimioterapia - e recompensado: ele foi nomeado cavaleiro da Légion d'Honneur e recebeu dois prêmios no Victoires de la musique de 2009, inclusive de melhor disco por Bleu pétrole.
Foi estranho saber da morte de Alain já em março de 2009, aos 61 anos, sem conseguir concluir o último disco e depois de cancelar algumas apresentações, justamente quando eu me aprofundava em sua discografia e descobria versos como "você sabia que um canalha bebeu a água do nenúfar?".
Continuo sem fumar na esperança de, com mais tempo disponível, quem sabe deixar, depois de mim, algo que caiba na noite que ele levava.
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