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Mostrando postagens de 2023

Marie Trintignant: vinte anos depois

Foi provavelmente em 2006, quando ainda assistíamos a filmes em DVD, que descobri, improvável e escondido numa locadora de interior, “Um homem e uma mulher”, do Claude Lelouch. A fotografia monocromática, o ritmo contemplativo, as paragens ventosas, a beleza intrigante da Anouk Aimée e a exuberância da bossa nova em seu pico, traduzida em francês, conspiraram para uma pequena obsessão pelo premiadíssimo filme de 40 anos antes. 💕 Eu era recém-formado e não sabia de que maneira trágica aquele filme poderia estar relacionado a um grupo que eu ouvia quando calouro, Noir Désir, responsável pelo inspirado “Des visages, des figures”, lançado em 2001. Provavelmente ainda me lembrava porém de que, sedento por mais material do grupo, tinha escrutinado os discos anteriores, em especial “Tostaky”, de 93, e “666667 Club”, de 96. E de que, estranhando o silêncio da banda depois do marcante Des visages… pesquisei notícias até saber do episódio que praticamente encerrou a sua trajetória. 😎 Não foi n...

Barunga, o acordo que nunca foi

The planting of the Union Jack Never changed our law at all ( Treaty , Yothu Yindi) Shifting sands and broken plans Lead me on to my homeland ( Bullroarer , Midnight Oil) O final dos anos 80 parecia auspicioso para quem tentava sobreviver por aí. Na constituinte brasileira instalada em 1987, Ailton Krenak alçou o conceito de diplomacia a novos patamares ao pedir desculpas antecipadas aos excelentíssimos congressistas para pintar-se de preto enquanto os lembrava de que os povos autóctones gostariam de existir e viver à sua maneira. Deu certo: em outubro de 1988, o Brasil havia chumbado no art. 231 de sua Carta Política o regramento pós-colonial mais completo, profundo, amplo e futurista de que se tem notícia até hoje no constitucionalismo global comparado. 🎴 Muito longe, em junho daquele ano, os australianos originais celebravam sua sobrevivência e se atreviam a querer existir. No festival Barunga de música, cultura e esportes (é dizer, existência), o Primeiro-Ministro Bob Hawke deu a...

A vaca sagrada

É, mas quando entra na água É, na primeira braçada É, ele não vale uma naba Ele não surfa nada, ele não surfa nada! ( Surfista Calhorda , Os Replicantes) Ondulaciones se extienden sin parar Un soplo de aire guarda un vendaval ( Vendaval , Los Enemigos) Outro dia conversava com alguém que percorreu o Caminho de Santiago e com quem não havia antes trocado impressões muito subjetivas. “Você teve alguma epifania, alguma ideia, fez alguma descoberta pela trilha?”, arrisquei. Sim, ela as tivera, e tocar no assunto aparentemente abriu comportas de diálogo antes seladas. Ao que tudo indica, ninguém passa incólume por uma peregrinação desse porte. Arriscaria dizer que tampouco alguém permanece indiferente ao se haver de fato com a arrebentação, o vento, as marés e as correntes. Há ali uma fonte óbvia e inesgotável de paralelos e imagens literárias - eu mesmo já explorei algumas neste blogue. Talvez porque, ao virar as costas para o continente e encarar vagalhões em sequência, o mundo urbano se ...

Dois Rios

Leve, leve Não chora mais agora Tudo a salvo, respira fundo e olha Vai com calma, vai de coração Até porque deixar pra trás Pode ser andar pra frente Tanto fez se tanto faz Vai em paz e vai contente ( Leve , Tim Bernardes) Olha o retrovisor e foi alucinante Esse andar soprando a vida adiante Com a escolha de, a escolha de só confiar (...) E o que virá, é o que virá Não importa mais, já não sigo só ( Blue , Dado Villa-Lobos) (Alguém me disse, quando tudo já havia acabado e eu não sabia, que tinha me amado, como se confessasse uma fraqueza moral - o pretérito é que machucou. Outrem, na manhã de uma noite ao mesmo tempo delicada e sublime, enfiou a cabeça no travesseiro lamentando a má notícia de que poderia estar se apaixonando. Esses dias devo ter caprichado no tato e na alegria porque o risco de haver amor fez com que me dissessem que ficaríamos por ali, antes de quase tudo.) Rios Numa praia delimitada por dois rios, uma extremidade é marcada também por um rochedo coberto de mata úmida...

Na Natureza Selvagem

Foi ainda em 2008, quando o filme talvez estivesse em cartaz, que um ex-vizinho e amigo da adolescência me recomendou “Na Natureza Selvagem” (Into The Wild) , enfatizando mais o quanto eu provavelmente me identificaria do que as prováveis virtudes da obra. Quando colegas de sala no colégio, íamos ao cinema de vez em quando e vimos surgir os formatos compactos, a começar pelo DivX , que começou a aproximar os longa-metragens das músicas em MP3 . Ele se interessava por tudo e tinha que aturar minha rabugice quanto às comédias de caretas e às sitcoms - provavelmente a partir dessas divergências intuiu que eu apreciaria o tom grave de Into The Wild . Christopher McCandless, depois Alexander Supertramp Meu amigo estava mais certo do que calculava: até hoje, é meu filme preferido, o único que revejo periodicamente. A obra, aliás, me provocou uma pequena obsessão e me levou a ler o livro em que se baseou e o testemunho de sua irmã sobre a história de Chris McCandless. É um raro caso, porém,...

40: esse bodyboarding tá diferente

São relativamente comuns relatos de pessoas que ficaram “de fora” do mundo por décadas: condenados que recobram a liberdade e têm que se entender com a internet e os smartphones, organismos tenazes que acordam de anos e anos de coma e emergem em realidades futuristas. Mas se na ficção distópica eles quase sempre se veem em apuros, quero crer que será empolgante acordar numa época em que o trabalho remoto é uma alternativa e as contas podem ser pagas de casa. A partir da adolescência, quando me mudei para longe do oceano, o mar tem sido objeto de uma evidente obsessão: preenchi páginas de diários, crônicas e ficção com digressões sobre todos os aspectos relacionados a estar perto do Atlântico: vistas, cores e resplandecências; o cheiro úmido e salgado da maresia; o marulho hipnótico; os ciclos caprichosos das marés; os humores dos ventos e os seus efeitos sobre a textura da água e o comportamento da ondulação; o atrito incessante da movimentação de ar nas orelhas: está tudo lá, debulhad...