Deu certo: em outubro de 1988, o Brasil havia chumbado no art. 231 de sua Carta Política o regramento pós-colonial mais completo, profundo, amplo e futurista de que se tem notícia até hoje no constitucionalismo global comparado.
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Muito longe, em junho daquele ano, os australianos originais celebravam sua sobrevivência e se atreviam a querer existir. No festival Barunga de música, cultura e esportes (é dizer, existência), o Primeiro-Ministro Bob Hawke deu as caras e se comprometeu a cristalizar, até 1990, no ordenamento jurídico do país, normas que assegurassem aos indígenas a prerrogativa de permanecer existentes. Não houve, porém, consenso entre os principais partidos e a iniciativa caiu por terra. De saída do gabinete, o Chefe de Governo emoldurou o tratado que havia prometido no Congresso Australiano. Por arrependimento ou como um recado, nunca se vai saber.
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Com essas e outras faixas, sempre cantadas ou contendo estrofes em línguas australianas, o Yothu Yindi alcançou razoável projeção, façanha que não deve ser subestimada quando se trata de pessoas cuja simples presença, com aparência diametralmente oposta aos paradigmas estéticos eurocêntricos, incomodou profundamente os ingleses eugênicos: muito depois dos massacres habituais, até 1967, a miscigenação com essa gente era punida com o sequestro das crianças pelo Estado, que as “tutelava” até os 21 anos em orfanatos onde, obviamente, línguas australianas eram banidas e as vítimas eram submetidas a doutrinações monoteístas.
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| Gerações roubadas |
Ao subir a palcos do mundo inteiro coberto de cinzas, tocando instrumentos e entoando línguas de dezenas de milhares de anos, o Yothu Yindi dá testemunho da força ancestral da música e da dança, valendo-se de instrumentos elementares, como um tubo oco e dois pedaços de madeira percutíveis, e passos inusitados, geralmente incluindo joelhos e cotovelos em ângulos retos, aparentemente pouco elaborados mas inegavelmente expressivos.
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É inevitável pensar que, em algum estágio de nossa história, dançávamos todos bem daquela maneira em volta de fogueiras, e que a rusticidade dos meios é pormenor ante o ímpeto estético humano.
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Boa parte do sucesso do grupo pode ser atribuída a Mandawuy Yunupingu, vocalista carismático e uma daquelas pessoas que milita, questiona e revoluciona sem cartazes nem lemas, cuja música em si é a força transformadora. Lembra Maurício Tizumba, que deixa para outros o discurso histórico-teórico, e uma conversa sobre racismo que outro dia tive com uma amiga: “cansei de retrucar absurdos e explicar o óbvio. Eu existo, trabalho, ando por aí, estou aqui. Deixo minha existência falar por si”.
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| Mandawuy: existiu |
Por aqui, na década seguinte, a região confirmou a vanguarda do constitucionalismo contemporâneo: as constituições do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009 os consolidaram como estados plurinacionais, primeira inovação desse gênero após quase 900 anos de estado-nação. Mais recentemente, o Chile discute, entre percalços, também refundar-se como país plurinacional.
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| Atangas: sagradas, mas tímidas perto do didjeridu |
No Brasil, o marco temporal das terras indígenas, aplicação tendenciosa de uma construção jurídica que esvaziaria o fundamental art. 231 da Constituição, foi felizmente rechaçado pelo Supremo Tribunal, e novas terras indígenas devem se somar às cerca de 750 já existentes, cobrindo quase um quarto da Amazônia Legal, entre outras áreas território afora, o que nos torna, de fato e de direito, um dos países mais plurais do mundo.
Em outras paragens, porém, existir anda mais difícil do que nos anos 80. Em nome da artificial restituição de um estado histórico, cuja língua já se havia perdido milênios antes, palestinos atraem os maiores arsenais da Terra para as margens de sua exígua gleba mediterrânea. Já na imensa ilha-continente, os autóctones, hoje apenas cerca de 3% da população, tiveram o reconhecimento constitucional de sua subsistência e o direito de elegerem representantes parlamentares negados num referendo em que 60% do eleitorado cara-pálida emplacou um sonoro “não”.
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Num tempo em que a salvação dos biomas e, por consequência, do planeta, é potencializado pela outorga de espaços aos povos tradicionais, a Federação Australiana vota na contramão da história e cala sua “voz tribal”. A vida tribal, aliás, longamente associada à rudeza, à brutalidade, à competição feroz e à adversidade dos meios vem se confirmando como a voz do futuro: compatível com a renovação dos sistemas naturais, viável, "minimalista", livre, autônoma. A letra de Treaty, ao se refererir ao primeiro fiasco da Declaração de Barunga, parece profética vista de hoje: "agora dois rios seguem seu curso, separados por tanto tempo".
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| Bandeira Aborígene Australiana |
O apelo de Mandawuy Yunupingu para que escutássemos nossas vozes tribais parece ter caído por terra e ele, morto em 2013, foi poupado de assistir à maioria dos eleitores australianos opinar que os antigos ocupantes do continente deveriam continuar a se resignar à inexistência jurídica e institucional. Provavelmente, também como na letra de Treaty, num corroboree inspirado como ele próprio, ele está "sonhando com um dia melhor, em que as águas serão uma só".










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