Outro dia conversava com alguém que percorreu o Caminho de Santiago e com quem não havia antes trocado impressões muito subjetivas. “Você teve alguma epifania, alguma ideia, fez alguma descoberta pela trilha?”, arrisquei. Sim, ela as tivera, e tocar no assunto aparentemente abriu comportas de diálogo antes seladas. Ao que tudo indica, ninguém passa incólume por uma peregrinação desse porte.
Arriscaria dizer que tampouco alguém permanece indiferente ao se haver de fato com a arrebentação, o vento, as marés e as correntes. Há ali uma fonte óbvia e inesgotável de paralelos e imagens literárias - eu mesmo já explorei algumas neste blogue. Talvez porque, ao virar as costas para o continente e encarar vagalhões em sequência, o mundo urbano se faça distante e abstrato, como as cidades que o caminhante deixa para trás.
Especificamente no meu caso, a iniciativa de pegar ondas parece ter a ver com uma regressão juvenil, com a retomada de um projeto abandonado de repente na adolescência. Pelo que dizem, a crise da meia-idade é outro percurso pelo qual ninguém passa batido.
A caça ao tesouro do passado me levou então a um período atlântico um pouco mais alongado, que não falhou em sugerir metáforas desde o primeiro dia. Exemplo: como a ondulação, é impossível prever efetivamente ou exercer ingerência sobre os sentimentos que assomam de repente, sem vento nem causa aparente que os explique. Vai ver, como sugeriram, os sentimentos são bem menos sutis do que poetas antigamente suspeitavam - mecanismos relativamente previsíveis do neocórtex, dados por concentrações de determinados hormônios e probabilidades fisiologicamente ponderadas. Cálculos “evolucionários”, opacos ao indivíduo.
Mas se as respostas de certos órgãos - em particular daqueles ligados ao tubo digestório - são em certa medida previsíveis e influenciáveis, desamparo, angústia, solidão e medo são, por outro lado, raramente imputáveis ao pepino descascado ou ao feijão mal cozido. Sua origem deve se encontrar muito adentro, assim como uma ondulação bruta e súbita dificilmente se explica pelo mar plano, calmo e de pouco vento que a vista consegue alcançar.
Depois de alguns dias de rotina em peregrinação pendular entre água e areia, a mágica do caminho passou então a fazer das suas: a ideia do sagrado, de que fala Rudolph Otto, estaria entre o espanto e o fascínio, o medo do caldo convivendo com a atração aguda pelos instantes de glória do drop.
Digressão: embora considere a terminologia americana relativa ao surfe precisa e expressiva, tendo a utilizar equivalentes brasileiros, quase sempre disponíveis. O drop é importante exceção: ninguém diz queda ou despencar, drop é drop. Descreve um fenômeno que só se dá em ondas a partir de certo porte: quando se consegue alcançar o fluxo da vaga em formação, uma transição mais ou menos brusca acontece entre o remar e bater os pés por conta própria e o instante em que a água se encarrega de rebocar o praticante. É uma transição também de altura, cai-se da crista para a base da onda, onde o turbilhão de repente se impõe. Ao drop pode se seguir então o almejado instante da verdade profunda, o “mysterium tremendum” de R. Otto.
Às vezes, contudo, o que sobrevém é a contraparte menos gostosa da verdade divina, a vaca, aqui uma vaca sagrada. O termo em inglês, wipeout, é útil mas talvez dramático demais. Afinal, o acidente na onda raramente implica a aniquilação do praticante. O termo nacional soa ideal porque o caldo torna o atleta, momentos antes cheio de projetos e iniciativa, num ser à mercê do torvelinho, justamente como a vaca caída num buraco ou presa no brejo: debater-se só o faz cansar-se ou afundar ainda mais. A vaca sagrada encarna o contraponto da epifania do drop e, ao realçar a sua raridade, confirma o seu caráter quase espiritual.
Da balança que contém o medo e a glória, que pende no momento de se atirar ou não na rampa d’água extrai-se talvez a alegoria perfeita para todas as decisões de fato importantes. Da inação se pode cair para o brejo dos bovinos incautos ou, como aquele outro mamífero menor, decolar a partir da queda, já que, ao estilo dos morcegos, não somos capazes de nos lançar ao ar por força própria mas, de prancha na mão, podemos alçar pequenos voos ao sublime.
A mágica do vaivém salgado também se revelou em outro truque - portais no tempo, entre o pico da adolescência e a sombra da passagem do meio. A exigência física de alguns minutos na água jogou luz sobre as longas horas e muitos quilômetros de remadas de décadas antes. Impertinente na boca, a espuma salgada suscitou, como o perfume do chá de tília de Proust ou alguma técnica de hipnose regressiva, a frequência com que a ondulação castigava meu corpo de então. Uma praia de perfil aberto, ventosa, de casuarinas tortas e retentora de uma névoa melada de sal suscitou uma juventude idílica que, talvez tanto quanto o drop, eu procurava ali muitos anos depois.
Nessa praia, vazia que nem as Mesetas do Caminho, uma banhista solitária acocora-se de modo que faz revir à mente as antigas multidões de veranistas de biquíni e, aqui, curiosamente, o vetor do Eldorado é invertido: posso já não remar quatro horas antes do almoço e me apavoro mais do que deveria ante a iminência da sacra vaca. No âmbito das artes amatórias, porém, a evolução foi certamente positiva, cogito, repassando algumas das vezes em que minha pertinácia lentamente adquirida dobrou o espanto que muitas criaturas (que nunca cogitaram pegar onda) provocaram.
Do buraco de minhoca do espaçotempo também sobressai - talvez sob a ducha elétrica que remete às da praia da infância - o contraste delicioso e consciente que eu cultivava então: as horas de frio, desconforto, exaustão, as lidas ingratas com a arrebentação grossa eram tornadas mais leves pela lembrança de que estava a poucos metros do conforto máximo de minha existência. No apartamento dos meses na praia, sem rotinas de escola nem trabalho, dispunha de todo o tempo do universo só para mim e a vastidão oceânica logo abaixo, tentando lamber as ripas do guarda-corpo das varandas.
Foram marcantes um drop particularmente súbito, que me fez produzir sem querer um pequeno uivo de assombro ao me ver numa parede com pinta de querer honrar o termo wipeout. Ela se desfez em espuma de algodão, porém, dócil como a marola mais reles. Era um sopro de ar que não escondia vendaval. E outro, improvável, num dia de calmaria, em que só remadas e pernadas insistentes proporcionavam algum esboço de movimento e a onda reticente em que eu me empurrava acabou se conectando com uma estrutura tubular, grande e inicialmente perfeita. A aparente sorte se converteu em alarme quando a porção logo adiante do túnel deu claros sinais de que desabaria antes do tempo. Como a manhã de ondinhas infantis tinha-me posto confiante, retirei-me do cilindro (sem vocalização de medo) e me direcionei à praia, seguro de que ali estaria a salvo do impacto. Um braço desencaixado e sucessivas tentativas de afogamento foram lições da vaca divina: até os dias de merrecas guardam o risco de brejo.
O curso vacarino e os lembretes do túnel do tempo consolidaram-se depois do grande caldo. O braço comprometido me limitou ao inside, e ali me diverti despretensiosamente. Que mal tem, se eu tiver me tornado o tiozão do raso, pensei? As famílias que invadiram o balneário no fim de semana, manuseando pranchas de todos os tamanhos e formas, com um, dois ou mais ocupantes, às vezes cachorros e bebês, lembraram que a bodyboard, a bicicleta da praia, está ali para passarmos bem. Os garotos que vi lidando com sequências cruéis e que por momentos achei que teria que resgatar, que passavam por baixo dos vagalhões no último instante, às vezes jogavam as pranchas por cima delas e seguiam como num jogo provavelmente eram reedições de mim mesmo na sua idade.
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| 😁 "Hihihihi... wipeout!" 🥁 |
E depois de mais uns dias de salmoura a imagem mais evidente vem à mente: se nenhuma onda é inteiramente previsível, se não sabemos se vai desabar mais rápido para a esquerda ou para a direita, se aparentes marolas são capazes de causar danos consideráveis e masmorras imponentes às vezes se desfazem em espuma fofa, talvez os sentimentos sejam entidades mais ou menos autônomas que não deveríamos tentar controlar: debater-se durante um incidente costuma piorar o caldo em lugar de atalhá-lo. Pode ser que, vida afora, agitar braços e pernas contra um torvelinho não tenha outro efeito relevante além de nos fazer afundar ainda mais na areia movediça.
O processo de (re)entender-me com a grande massa aquática não foi inteiramente solitário, apesar de algumas madrugadas fantasmagóricas em mar frio, despovoado e remexido. Ver colegas esperarem, com os pés na areia e pacientemente, que a arrebentação cansasse sua fúria por um ou dois minutos me fez rever a insegurança quanto ao meu próprio fôlego e à minha integridade ergométrica. Conversar com pessoas que observam as marés em caráter permanente, o longboarder de alma clássica que deixa a ondulação dar o tom e explica que “gosta de ler a onda”, observar as crianças que, ao não associar urgências de meia-idade ao procedimento, enfrentam, saltam, esquivam e mergulham sob as ondas, no lugar certo, me fizeram dispensar a mim mesmo do senso de missão.



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