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O tubo e as artes suaves


Transar bem todas as ondas
a Papai do Céu pertence,
fazer as luas redondas
ou me nascer paranaense.

A nós, gente, só foi dada
essa maldita capacidade,
transformar amor em nada.

(Paulo Leminski)

Só recentemente descobri que os jiujiteiros (praticantes do jíu-jítsu) se referem à sua (recente?) modalidade como “arte suave”, descrição que sempre ouvi associada ao judô, clássica atividade dos meninos em formação (paralela ao balé das meninas), sobretudo na região onde cresci.

Fui pesquisar para saber, meio decepcionado, que o judô é que é invenção bastante recente, entabulada por Jigorō Kanō, mestre que trabalhou para converter o jūjutsu - esse sim o conjunto original de técnicas chamado de arte sutil - em algo menos mortífero e passível de ser ensinado às crianças em 1882.

Duke

Por essa época, não tão longe dali, o arquipélago do Hawai’i completava um século de unificação sob o Reino Havaiano (Ke Aupuni Hawaiʻi), crescentemente cobiçado pelos donos da Terra no século XIX e perigosamente próximo das ambições dos Estados Unidos. 

Quando Duke Kahanamoku, biografado em "Waterman" nasceu, a antiga prática de pegar ondas (que ele tinha resistência a chamar de surfing), surgida em outro pedaço do Pacífico mas consolidada no Havaí, andava meio esquecida. A trajetória desse atleta espantoso, mais do que pelas façanhas esportivas na natação, da qual foi multimedalhista olímpico, e no surfe, chama a atenção por sua relação intrínseca, profunda e permanente com a água, especificamente os mares do Oceano Pacífico e suas ondulações perfeitas. Como outros da época, era chamado de waterman (homem da água) em razão de sua conexão muito mais do que funcional - quase xifópaga - com o meio salgado.

Arte suave documentada em 1858

Desde a familiaridade íntima com o mar - superfície e fundos - da costa de Waikiki, passando pela habilidade formidável de nadar em diferentes estilos, em alto desempenho competitivo ou, no mais das vezes, por puro deleite; pela dedicação quase ritualística ao wave-riding (prática de pegar ondas), da escolha da madeira com que ele próprio esculpia, aperfeiçoava, polia e impermeabilizava seus pranchões até a introdução da prática do surfe na Califórnia e na Austrália; também pela vela, remo de caiaque e canoa e pelo polo aquático até a inadvertida invenção do stand-up paddling, o liame umbilical de Duke com a água salgada é inspirador.

O Havaí tornou-se território dos Estados Unidos, viveu sob toque de recolher e controle militar na Segunda Guerra, adquiriu status de estado (sob protestos de muitos congressistas, incomodados com a ideia de acolher um país de gente marrom na federação) e tornou-se uma potência turística sem relação com o antigo arquipélago onde os nativos se reuniam todos os dias para tomar a fresca da tarde em Waikiki e assistir à festa do wave-riding.

Olha só, sem prancha!

Duke Kahanamoku foi também um fio de ligação entre as antigas tradições polinésias de fabricação de pranchas e as técnicas mais modernas, que aceleraram marcadamente entre os anos 60 e 70, época em que o esporte já se havia disseminado mundo afora, inclusive no Brasil. Butch Van Artsdalen, por exemplo, era membro da “Equipe de Surfe Duke Kahanamoku”. Ainda na década de 1960, esteve entre os primeiros a surfar os enormes e mortais tubos de Banzai (Pipeline), de pranchão, e vinha do Estado da Virginia, sem nenhuma tradição no assunto.

Butch Van Artsdalen: a alma não era pequena

Os experimentos de fabricação de pranchas de materiais sintéticos continuaram avançar e pioneiros como Jock Sutherland passaram a explorar picos, inclusive tubulares, em plataformas cada vez mais parecidas com os dardos resinados de hoje em dia. Duke, já bem veterano, ao experimentar uma prancha moderna, preferiu insistir nos seus pranchões - as novas eram, segundo ele, difíceis ou traiçoeiras (“tricky”).

Não é traiçoeira e dá pra levar carona🏄🏼‍♂️

O comentário do Duke, fácil de desdenhar como reação de um senhor já meio rabugento, talvez indique uma mudança importante: a transição do pranchão para a prancha moderna - cujos primeiros entusiastas eram chamados de hotdoggers (exibidos) é mais profunda do que a modernização de equipamentos que costuma acontecer em qualquer esporte. Enquanto a prancha havaiana é uma plataforma de transporte, pesadamente deslocada pela onda, e sobre a qual o praticante contempla os arredores, desloca-se em várias direções ou carrega alguém de carona, a “manobrabilidade” da shortboard é quase ilimitada.

A prática do wave-riding teria se transmutado assim num esporte de fato, em que a onda não é mais protagonista, mas uma base sobre a qual acrobacias, exibições e competições atléticas propriamente ditas se desenvolvem.

Mike Stewart sem prancha: simples

Sempre preferi a expressão “pegar onda” a surfar por ser o surfe tradicionalmente associado à pranchinha resinada, com quilhas, manobrada com os pés, e tentar explicar a bodyboard em geral não dá certo. Ao ler a história do Duke, percebi que pegar onda é uma descrição muito mais ampla e significativa do que indicar uma modalidade ou outra: tem a ver com desfrutar da arrebentação, com uma prancha assim ou assado ou mesmo sem nenhuma, como ele fazia com frequência. A onda é o fator principal, é ela que nos dá carona. E, recapitulando, lembrei-me de momentos esparsos em que, longe das minhas pranchas esquecidas e da própria ideia de pegar onda como esporte, desci marolas conjurando a memória modular e provando faíscas parecidas com as das sessões da adolescência.

Por acaso, soube outro dia que Mike Stewart, talvez o maior nome da história do bodyboarding, é adepto e divulgador do bodysurfing, justamente a prática de pegar ondas sem nenhuma prancha, provavelmente anterior às aventuras com tábuas paipo (curtas, como a bodyboard) e alaia (grandes, como os pranchões), hábito que focas, golfinhos, o Duke e certamente havaianos de séculos atrás compartilham. Mike parece concordar que a onda é sempre a condutora dessa atividade, ao comentar sobre Pipeline:
Muitas vezes, é mais questão de capturar a força [da onda] e redirecioná-la do que tentar produzir sua própria velocidade ou potência, então é um estilo realmente favorável ao bodyboarding.
Tem onda para todo o mundo

Mike Stewart, que mudou-se para Pipeline, sabia do que estava falando. Banzai Pipeline, em seus maiores dias, era uma espécie de tabu para os havaianos, e só na época de Butch Van Artsdalen e Jock Sutherland veio a tornar-se destino habitual. Mike, ao ascender na era clássica do bodyboarding, integrou-se com aquela onda como poucos. Ao rever imagens de campeonatos ali disputados nos anos 1990, me encolho a cada vez que um tubo colossal começa a desabar sobre a cabeça (já então careca) do ídolo. Num contexto em que a maioria das pessoas, inclusive do esporte, calculariam como fazer para sobreviver, ele se posicionava e se direcionava de maneira que a força destruidora do cilindro em colapso lhe proporcionava mais uma manobra e uma nota ainda mais alta na avaliação dos jurados. Algo tão difícil de crer como ser capaz de ver uma bala de canhão se aproximar e agarrá-la para pegar carona até o próximo quarteirão.


Mike Stewart elevou a jūdō de direcionar uma força potencialmente adversa a seu favor ao extremo. Se é engenhoso posicionar-se de modo que o impulso do próprio adversário o leve ao tatame, transformar a ameaça de vagalhões que regularmente tiram vidas em movimentos plásticos e graciosos aproxima-se do sublime. Como o Duke, Mike transitou entre eras, consagrou-se durante os anos 80 e 90 mas continuou a acumular títulos nos anos 2000. Mas provavelmente não teve interesse em ombrear com os novos prodígios da modalidade (agora aérea), a exemplo do desportivamente imbatível Pierre-Louis Costes, com suas projeções contranewtonianas, análogas no bodyboarding ao que fazia Kelly Slater de pé.

Meu semiconterrâneo Paulo Leminski, apodado PLP (polaco louco pacas), faixa preta de judô, lidando com um vagalhão de ressaca

Kelly Slater e Pierre-Louis Costes expandiram as fronteiras de suas modalidades. Eles representam o triunfo definitivo do surfista sobre a ondulação, o domínio e a prevalência. Mike Stewart, com suas manobras desenhadas como quem calmamente ilustra um movimento em uma aula de geometria, divergiu dessa vereda, aparentemente atraído por algo distinto. Se Pierre-Louis é uma barragem de Itaipu, o triunfo final sobre a natureza, Mike Stewart seria uma roda d’água entalhada à mão.

👀

Duas épocas da Cláudia Ferrari

Ao que parece, como Duke Kahanamoku, o “surfista de alma” por excelência, e Butch Van Artsdalen, que desprezava a competitividade crescente do surfe já na década de 60, Mike Stewart, já multicampeão, descobriu enfim alguma conexão mais sutil com a atividade a que dedicou sua vida:
Muitas vezes na vida as coisas ficam tão complicadas, as coisas têm tantos lados e há mais coisas e é essa sobrecarga constante de informação, sabe, sobre tudo. [...] Para mim, ir fazer bodysurfing é uma maneira de simplificar tudo. É só você e a onda. [...] Para mim, é apenas uma forma de simplificar de verdade, você tira tudo, sabe, sem prancha, sem nada. É só você e a onda e a sensação é... muito simples. É uma experiência pura.
Algo da passividade dos antigos havaianos e suas pranchas enormes se transferiu para o bodyboarding. Se, antigamente, manter-se de pé, em pose, ao deslizar sobre as águas era prazer suficiente, "segurar" o turbilhão com as mãos na pranchinha retangular é em si uma aventura de sensações potencializadas pela proximidade com a água e pela velocidade incomparável. As mulheres que o praticam, talvez fisicamente menos propensas a proezas antigravitacionais, aperfeiçoaram a sutil habilidade de dosar, como judocas, as forças disponíveis e suas próprias intenções esportivas.

Cláudia Ferrari em simbiose: quem surfa quem?

Na maioria das ondas, o surfista de prancha moderna, um pouco como um ciclista, um skatista ou um tubarão, não pode parar de se mexer, não tem a opção de deixar-se levar. Daí a hiperatividade dos campeões atuais, que o fazem com mais ou menos graça: Gabriel Medina e Ítalo Ferreira, por exemplo, igualmente geniais, têm posturas diferentes: Ítalo seria uma espécie de guerreiro medieval europeu portando armadura completa e lança de justa, implacável; Gabriel um ninja de passo leve e katana, versado em alguma arte sutil.

Talvez a única exceção ao surfe acrobático, parametrizado e hiperatlético seja hoje o tubo. O tubo não é uma manobra que se faz, algo que se "desempenha". Exige, claro, habilidade considerável, controle da velocidade e posicionamento preciso, mas acontece, como um presente de Iemanjá aos escolhidos. Dentro do túnel, o agraciado se mantém basicamente estático, aguarda e torce para que os deuses continuem a brindá-lo até logo adiante, onde o canudo se reabre e ele pode, com certa sorte, experimentar uma pequena glória.

Daniela Freitas: "acho que eu vi um tubo" 🐥

O tubo se mantém como a “manobra” mais cobiçada e aplaudida entre a maioria dos surfistas e serve assim para preservar algo da arte suave de pegar onda, na qual a vaga continua a ser a protagonista e diretora do espetáculo, e o praticante alguém que reconhece o privilégio de misturar-se por alguns segundos com uma das forças primordiais do planeta. E, no processo, experimentar alguma revelação transcendental ou apenas passar bem. Afinal, como disse o próprio Duke Kahanamoku, que não se interessou pelas pranchas acrobáticas, “o melhor surfista da área é o que está se divertindo mais”.

Talvez como forma de me consolar pelas minhas limitadas capacidades acrobáticas, carrego essa frase comigo. Mas sinto identificação sincera com a visão que encerra, de desfrutar da arrebentação como algo mais ritualístico e menos esportivo. Também me alegram pequenas identificações com Mike Stewart - o único grande do bodyboarding que parece extrair prazer do cutback (guinada na direção contrária à da onda) e cuja postura ao descer ondas sem prancha eu, sem nunca tê-lo visto, intuitivamente repeti nas minhas experiências esparsas.

'Cutback', marca do Mike Stewart

Hoje pegar ondas é nada menos do que esporte olímpico, e há máquinas de gerar industrialmente tubos impecáveis (Wavegarden, PerfectSwell, Xing Feng, SwellSpot). Pode ser que nos próximos anos eu tenha acesso a uma dessas, equipamentos que estariam para o surfe assim como as piscinas (“tanques”, como chamavam as primeiras, na época do Duke) para a natação. Talvez o tubo esteja tornando-se algo produzido em série e a prática do judô com o mar, as marés, correntes e o vento esteja se fazendo obsoleta.

Última

É conhecida e comovente “A última crônica”, do Fernando Sabino. Nunca pensei em como seria meu último texto, talvez por vislumbrar ainda décadas de verborragia lida por ninguém. Mas para pegar onda me sobra menos tempo. Como sonhar ainda está de graça, gostaria que minha última onda fosse não num dos tanques clorados mas sim como uma das longas viagens do Duke em seu pranchão, como uma esquerda simbiótica da Cláudia Ferrari ou uma das sessões “simplificadas” de Mike Stewart, em fusão com a salmoura.

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