Pular para o conteúdo principal

O homem desceu do ônibus

Nunca me interessei muito por especulações teóricas sobre a literatura, mas às vezes me pego pensando se é um bom investimento de tempo e esforço esmerilar as frases que traduzem as cenas mais simples. Como guardo recordações impressionistas do que leio, suspeito que reescrevê-las para além do que seja claro e não desanime o leitor seria vaidade flaubertiana.

Dificilmente me esqueceria da passagem de O Idiota em que o Príncipe Míchkin tem uma crise epiléptica numa escadaria. Não me lembro de nenhuma sentença específica daquele livro interminável (interminado), embora guarde, muitos anos depois, a admiração pela descrição completa e sutil, extraída de experiência própria do autor, das sensações contraditórias e enevoadas que antecedem o episódio, culminam num bem-estar agudo e insuperável e cessam com o desmaio.

Por outro lado, ao descrever a algum desavisado como se utiliza uma escada em Histórias de cronópios e de famas, é de se supor que Cortázar tenha se divertido montando e aprimorando cada uma das poucas frases que compõem o texto. 

✍🏻

Para evitar o lugar-comum da galinha que atravessa a rua, me pergunto se transmitir a informação de que um homem saiu de um ônibus urbano causaria cólicas de angústia e dilemas estilísticos a quem coubesse enfiar essa cena numa narrativa qualquer.

Já de início, variações dialetais, sem contar as giriescas, podem provocar dúvidas legítimas. Afinal, pode-se dizer que o homem desceu do ônibus enquanto outros diriam que o homem saltou do ônibus. Não longe no mapa e no tempo, diriam que o homem saltou (ou desceu) do lotação. Em outros ambientes, que baixou do bumba ou vazou do balaio. Em outras paragens garantiriam que o homem desceu do coletivo, mais longe testemunhariam que o homem apeou do autocarro. 

😎

Incumbido de uma cena claramente simples, o narrador zeloso ponderaria então variações regionais por preciosismo, sopesaria a autenticidade de se manter fiel à dicção de seu bairro, sua cidade, seu estado ou país, dividido entre a ambição de soar "neutro", universal e traduzível e a prescrição tolstoiana de escrever sobre sua aldeia para dizer do mundo.

Pode ser também que o ato de descer do ônibus tenha implicações de enredo bem mais consequentes do que alguém que cumpre uma rotina de deslocamento para o trabalho ou para a escola, por exemplo. Se o personagem sofreu dias traumáticos numa determinada cidade ou bairro, e se, no moinho de sua memória, os fragmentos se afunilaram para um acontecimento simbólico num determinado endereço, deve ser de bom tom não narrar o momento culminante quando, depois de muitas peripécias, ele toma coragem para lá voltar como se descreveria um vizinho dar bom dia.

"Vinte e sete anos depois, o ônibus parece futurista, o trajeto é remotamente familiar, as fachadas de prédios, letreiros e lojas foram quase inteiramente transformados. Talvez toda a hesitação tenha sido exagerada, pensou, talvez aquele lugar agora só existisse em sua memória, em rastros. Quando o veículo dobrou a última esquina, porém, a luz estava lá, idêntica. O mesmo sol que encontrava uma brecha entre as prumadas dos prédios e fazia o asfalto se metalizar no final da tarde tornou evidente que ele havia finalmente retornado. E então, na parada indicada pela placa que não havia mudado de lugar, em frente ao sobrado avermelhado, que tampouco havia mudado de número, o homem desceu do ônibus."

"Cuídese especialmente de no levantar al mismo tiempo el pie y el pie"

Talvez o ônibus não seja sequer mero espaço de passagem. "Nunca se ressentira da falta de prestígio e reconhecimento da profissão. Nem tinha tanta preocupação com a perda do emprego, já tinha cogitado se juntar à mulher no restaurante que improvisaram na garagem de casa. Com o fundo de garantia e o acerto, construiria uma edícula e poderiam mandar a moça do caixa embora, o negócio cresceria. Mas tinha uma espécie de orgulho autossuficiente de dirigir aqueles veículos enormes, instituições urbanas com que as pessoas contavam a vida inteira - um orgulho que o tacógrafo e as câmeras desmentiram. Não ficaria tão emocionado se parasse de dirigir por decisão própria, para se dedicar ao restaurante. Passou o último dia de trabalho ruminando a constatação de que, nem de graça, poderia voltar a fazer o que vinha fazendo durante décadas. Nunca mais entraria naquele espaço com a autoridade de quem conduz. Sob o peso da certeza de que tinha sido a última vez, o homem desceu do ônibus."

🚍

Há ainda a hipótese de não apenas o ônibus não ser mero lugar de transição como a descida dos degraus de sua saída algo crítico por força do que aconteceu ali dentro mesmo. "Manteve-se calmo ao perscrutar os poucos passageiros de pé no ônibus até escolher a vítima. Definir a forma de abordá-la e de acessar sua bolsa também parecia uma espécie de jogo, um desafio de criança. Uma vez que conseguiu pegar a carteira e escondê-la, porém, a sua relativa frieza deu lugar a uma apreensão que beirava o pânico: tinha certeza de que alguém tinha notado, de que seria pego. Voltou para a parte central do veículo com a convicção quase palpável de que já avisavam a polícia pelo celular e mandavam sinais para o motorista. Mas ouviu foi o sinal de parada e andou até o fundo do ônibus, prevendo, a cada passo, que alguém o seguraria pelo braço, aplicaria uma rasteira ou imobilizaria de alguma maneira. Era um ladrão, afinal, literalmente e para todos os efeitos, um ladrão. Desceu o primeiro, o segundo e o terceiro degraus ainda incrédulo e só quando se viu sozinho no passeio conseguiu acreditar que tinha se safado."

🐱‍👤

Já disseram que a poesia é uma arte improvável - com as mesmas palavras que pedimos pizza e respondemos um e-mail de trabalho, alguns são capazes de evocar o sublime. Talvez o prosista lide muitas vezes com mecanismos parecidos, com descrições não tão diferentes do relato testemunhal - usar uma escada, ter uma crise epiléptica ou descer de um ônibus - para criar espaços narrativos com cenas parecidas às que vivemos por aí mas que compõem obras transformadoras. 

Provavelmente parte do talento desses criadores de pequenos mundos passa por intuir em que medida uma frase assim ou assado, rebuscada ou giriesca, regionalizada ou jornalística vai contribuir, no contexto da massa de palavras e parágrafos, para que o leitor não se esqueça da evocação que o biscoito no chá pode disparar, da existência à sombra da epilepsia, para que só se lembre que o personagem foi parar ali porque pegou um ônibus (e depois dele desceu, claro) ou até para que perceba que subir escadas, assim como montar histórias, é uma técnica surpreendentemente delicada, aperfeiçoada ao longo de anos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Preto n(ã)o branco

Angola, Congo, Benguela Monjolo, Cabinda, Mina Quiloa, Rebolo   Aqui onde estão os homens Dum lado cana de açúcar Do outro lado o cafezal Ao centro senhores sentados Vendo a colheita do algodão branco Sendo colhidos por mãos negras (...) Eu quero ver Eu quero ver Quando Zumbi chegar O que vai acontecer   ( Zumbi , Jorge Benjor)   Este ano celebramos (ou pelo menos folgamos) o primeiro Dia Nacional da Consciência Negra. Controverso como outras datas desse tipo, inclusive entre os negros, o feriado serviu de qualquer maneira para trazer à tona artigos e discussões sobre personagens importantes da história do Brasil.   ✊🏿   Uma é requentada de tempos em tempos: o teórico “embranquecimento” de Machado de Assis. Ainda que às vezes se mencione como o país funcionava na época e o racismo pseudocientífico do século dezenove, geralmente é destacado o silêncio do autor e os apuros de pessoas próximas sobre a questão. A sugestão é sempre a de que ele teria feito livre opç...

O cabra ainda está aqui?

Levántate y mírate las manos Para crecer, estréchala a tu hermano Juntos iremos unidos en la sangre Hoy es el tiempo que puede ser mañana   (Victor Jara, 'Plegaria a un labrador')   Era ainda na época da TV a cabo que assisti e fiquei fascinado por Edifício Master . Faz tanto tempo que, ao ouvir falar de Cabra marcado para morre r (resgatado por ocasião do aniversário de 60 anos do último golpe militar logrado), demorei a associar o nome do diretor. Ao assistir a Cabra…, porém, os paralelos que surgiram não tinham a ver com o outro documentário de Eduardo Coutinho e sim com o bem mais recente Ainda estou aqui e as reflexões sobre a obstinação golpista dos militares brasileiros, recentemente confirmada em alta definição .  Ligas camponesas Com relatos de primeira mão e provas materiais da truculência paranoica pós-1º de abril, Cabra… é de certa maneira uma contraparte rural do relato de Marcelo Rubens Paiva. Em lugar da constância narrativa deste, porém, o documentário co...

Laird Hamilton: obsessão

Ser feliz Es beber el mar, beber el mar (P. Suárez-Vértiz) O tubo é o lugar sagrado dos surfistas (L. Hamilton)   É curioso que Laird Hamilton tenha sido empurrado para a fama como Lance Burkhart, o surfista não só competitivo como inescrupuloso e petulante de “North Shore”, sucesso repetido muitas vezes nas sessões da tarde como “Surfe no Havaí”. Numa cena crítica, ele puxa a cordinha do herói e rouba a sua onda, mas é flagrado por Chandler, um “surfista de alma”, das antigas, modelador de pranchas e também fotógrafo. Waterman Ele chegou a ser associado a Lance na vida real, como os atores que fazem os vilões das novelas. Mas na verdade não gostava de campeonatos. Segundo ele, pelo desconforto com a ideia de ser avaliado por uma banca. Segundo seu pai, por não saber perder. Pai de consideração, aliás, já que o de sangue abandonou a mãe ainda grávida dele. Take Every Wave , o excelente documentário sobre a sua trajetória, abre falando de sua mãe, sobre quem existe farto material, i...