Angola, Congo, Benguela
Monjolo, Cabinda, Mina
Quiloa, Rebolo
Monjolo, Cabinda, Mina
Quiloa, Rebolo
Aqui onde estão os homens
Dum lado cana de açúcar
Do outro lado o cafezal
Ao centro senhores sentados
Vendo a colheita do algodão branco
Sendo colhidos por mãos negras
(...)
Dum lado cana de açúcar
Do outro lado o cafezal
Ao centro senhores sentados
Vendo a colheita do algodão branco
Sendo colhidos por mãos negras
(...)
Eu quero ver
Eu quero ver
Quando Zumbi chegar
O que vai acontecer
Eu quero ver
Quando Zumbi chegar
O que vai acontecer
(Zumbi, Jorge Benjor)
Este ano celebramos (ou pelo menos folgamos) o primeiro Dia Nacional da Consciência Negra. Controverso como outras datas desse tipo, inclusive entre os negros, o feriado serviu de qualquer maneira para trazer à tona artigos e discussões sobre personagens importantes da história do Brasil.
Uma é requentada de tempos em tempos: o teórico “embranquecimento” de Machado de Assis. Ainda que às vezes se mencione como o país funcionava na época e o racismo pseudocientífico do século dezenove, geralmente é destacado o silêncio do autor e os apuros de pessoas próximas sobre a questão. A sugestão é sempre a de que ele teria feito livre opção.
Não tão lembrado, outro escritor e personagem relevante da construção do país deve ter tido ainda menos opções que o Machado. Vendido pelo pai como escravo ainda criança, Luís Gama foi parar em São Paulo e, finalmente alforriado, foi impedido de estudar Direito na atual USP por pressão dos colegas e professores.
Luís também era mulato, filho de pai branco como a mãe de Machado, mas lidou com sua condição étnica de maneira diferente do colega mais jovem. Autorizado a postular perante os tribunais a aplicação da lei que proibiu o tráfico de escravizados ao Brasil (a famosa lei para inglês ver) e, posteriormente, da Lei do Ventre Livre, libertou, pela porta da frente, centenas de pessoas.
Luís também era mulato, filho de pai branco como a mãe de Machado, mas lidou com sua condição étnica de maneira diferente do colega mais jovem. Autorizado a postular perante os tribunais a aplicação da lei que proibiu o tráfico de escravizados ao Brasil (a famosa lei para inglês ver) e, posteriormente, da Lei do Ventre Livre, libertou, pela porta da frente, centenas de pessoas.
Num único procedimento judicial em Santos, por exemplo, operou para salvar 217 brasileiros da senzala. É o verdadeiro “Libertador da América”. Porém, negro/mulato convicto e incômodo aos interesses dos patrões, foi pouco celebrado pelos canais oficiais.
É compreensível que um homem vendido como escravizado e outro, crescido na capital sem ter que se bater para não ser acorrentado, tenham experimentado itinerários diferentes.
É compreensível que um homem vendido como escravizado e outro, crescido na capital sem ter que se bater para não ser acorrentado, tenham experimentado itinerários diferentes.
Luís Gama provavelmente não ponderou alternativas ao associar sua identidade à condição africana. Na literatura, por exemplo, dirigiu-se à mulher negra como musa plena, envolta em sua cultura imemorial, precedendo Jorge Benjor em muitas décadas:
Ó Musa da Guiné, cor de azeviche,
Estátua de granito denegrido,
(...)
Empresta-me o cabaço d’urucungo,
Ensina-me a brandir tua marimba
Estátua de granito denegrido,
(...)
Empresta-me o cabaço d’urucungo,
Ensina-me a brandir tua marimba
Também registrou denúncias quanto à condição delas:
Ciências e letras
Não são para ti:
Pretinha da Costa
Não é gente aqui.
Não são para ti:
Pretinha da Costa
Não é gente aqui.
Há quase duzentos anos, Luís Gama não só praticou uma militância negra de enormes resultados práticos como inaugurou teses que um século depois seriam recebidas como revolucionárias. Que diriam os Panteras Negras de Nova York de um advogado que, em pleno regime imperial-escravocrata brasileiro, sustentou que “o escravo que mata o senhor (...) cumpre uma prescrição inevitável de direito natural”?
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| 🐱👤 |
Luís Gama também denunciou, muito antes da ideia contemporânea de consciência negra para além da mestiçagem, a opção étnica pela casta dominante como recurso rasteiro de “ascensão” ou aceitação social ao contestar um adversário: “Eu não sou bode, sou negro. Minha cor não nega. Bode é vossa excelência que pretende disfarçar, com essa cor clara, o mulato que está por baixo”.
O infeliz que chamou Luís Gama de “bode” talvez cuidasse apenas de defender interesses compreensíveis num tempo de hierarquia racial, sustentada por um sistema de escravização intercontinental, protegido por lei (e liderado pelo Brasil, é bom lembrar) e por doutrinas eurocêntricas alardeadas por academias científicas mundo afora. Por outras vias, era o que também faziam o advogado e o romancista.
O infeliz que chamou Luís Gama de “bode” talvez cuidasse apenas de defender interesses compreensíveis num tempo de hierarquia racial, sustentada por um sistema de escravização intercontinental, protegido por lei (e liderado pelo Brasil, é bom lembrar) e por doutrinas eurocêntricas alardeadas por academias científicas mundo afora. Por outras vias, era o que também faziam o advogado e o romancista.
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| Maioral |
Pelos olhos de hoje, porém, Machado de Assis e Luís Gama parecem figuras diametralmente opostas quanto à questão africana no Brasil – um tido por “enrustido” e envergonhado de sua origem, outro herói lúcido e combativo.
Se, como dizem as más-línguas, Machado de Assis aceitou a “promoção” a branco e evitou o assunto para poder ser lido e existir como autor, seria sua conduta tão reprovável assim?
O que porventura fizeram para escamotear o fato de que o principal nome da literatura nacional não era branco não pode ser posto na conta dele. Machado de Assis não é culpado de termos vergonha de ser um país negro.
Dá para ir além: e se ele tivesse, de fato, “decidido ser branco”? Será que sou o único a perceber a contradição entre defendermos hoje apaixonadamente a prerrogativa de um homem descobrir-se mulher e assim passar a transitar socialmente (ou vice-versa) e, ao mesmo tempo, acusarmos alguém parido por uma portuguesa branca de traição ao se identificar como branco?
Se, como dizem as más-línguas, Machado de Assis aceitou a “promoção” a branco e evitou o assunto para poder ser lido e existir como autor, seria sua conduta tão reprovável assim?
O que porventura fizeram para escamotear o fato de que o principal nome da literatura nacional não era branco não pode ser posto na conta dele. Machado de Assis não é culpado de termos vergonha de ser um país negro.
Dá para ir além: e se ele tivesse, de fato, “decidido ser branco”? Será que sou o único a perceber a contradição entre defendermos hoje apaixonadamente a prerrogativa de um homem descobrir-se mulher e assim passar a transitar socialmente (ou vice-versa) e, ao mesmo tempo, acusarmos alguém parido por uma portuguesa branca de traição ao se identificar como branco?
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| 💂🏿♂️ |
Para além do óbvio anacronismo de medir a conduta de homens nascidos no início do século XIX pelas balizas de hoje, insisto na incoerência: se nos batemos para reconhecer os gêneros como construções culturais, por que seria tão vergonhoso abstrair matizes étnicos – e sobretudo cromáticos – no trânsito social?
Às vezes me pergunto, se Luís Gama renascesse na pele (de qualquer tom) de uma feminista contemporânea, acusaria uma mulher em transição de gênero, para homem, de pelega do patriarcado?
Meu palpite é que não. Talvez ele ponderasse que a condição sexual é mais matizada e sutil do que uma moeda de duas faces. Veja que, miscigenado como o destinatário de sua réplica, Luís Gama usou o termo “negro” para si, “mulato” para o outro e, ao mencionar ainda a sua “cor clara”, registrou uma amostra da pluralidade complexa da mestiçagem no país.
Às vezes me pergunto, se Luís Gama renascesse na pele (de qualquer tom) de uma feminista contemporânea, acusaria uma mulher em transição de gênero, para homem, de pelega do patriarcado?
Meu palpite é que não. Talvez ele ponderasse que a condição sexual é mais matizada e sutil do que uma moeda de duas faces. Veja que, miscigenado como o destinatário de sua réplica, Luís Gama usou o termo “negro” para si, “mulato” para o outro e, ao mencionar ainda a sua “cor clara”, registrou uma amostra da pluralidade complexa da mestiçagem no país.
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| Darcy e Abdias |
A fluidez étnica é na verdade um fenômeno clássico e amplamente documentado do ineditismo nacional. Décadas atrás, em “O Povo Brasileiro”, Darcy Ribeiro comentou:
«A característica distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor de sua pele. Nessa escala, negro é o negro retinto, o mulato já é o pardo e como tal meio branco, e se a pele é um pouco mais clara, já passa a incorporar a comunidade branca. (...) Exemplifica essa situação o diálogo de um artista negro, o pintor Santa Rosa, com um jovem, também negro, que lutava para ascender na carreira diplomática, queixando-se das imensas barreiras que dificultavam a ascensão das pessoas de cor. O pintor disse, muito comovido: “Compreendo perfeitamente o seu caso, meu caro. Eu também já fui negro”.
Já no século passado, um estrangeiro, estranhando ver um mulato no alto posto de capitão-mor, ouviu a seguinte explicação: “Sim, ele foi mestiço, mas como capitão-mor não pode deixar de ser branco” (Koster 1942:480).»
Quando olho certas fotografias de Machado de Assis, vejo um homem de origem africana fantasiado de corretor de seguros londrino que se expressava numa língua europeia e escrevia romances inusitados num país neotropical escravista. Diante do delírio colonial que o cercava, um eventual retoque de luz ou o fato de ele se enxergar ou não como “branco” são questões desproporcionalmente pequenas.
Se a forma de lidar com a mestiçagem no Brasil foi – como tudo mais – pautada pelo racismo escravocrata, é o caso de rever esse racismo, não de encarar a miscigenação de maneira simplista, muito menos fingir que ela não existe.
«A característica distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor de sua pele. Nessa escala, negro é o negro retinto, o mulato já é o pardo e como tal meio branco, e se a pele é um pouco mais clara, já passa a incorporar a comunidade branca. (...) Exemplifica essa situação o diálogo de um artista negro, o pintor Santa Rosa, com um jovem, também negro, que lutava para ascender na carreira diplomática, queixando-se das imensas barreiras que dificultavam a ascensão das pessoas de cor. O pintor disse, muito comovido: “Compreendo perfeitamente o seu caso, meu caro. Eu também já fui negro”.
Já no século passado, um estrangeiro, estranhando ver um mulato no alto posto de capitão-mor, ouviu a seguinte explicação: “Sim, ele foi mestiço, mas como capitão-mor não pode deixar de ser branco” (Koster 1942:480).»
Quando olho certas fotografias de Machado de Assis, vejo um homem de origem africana fantasiado de corretor de seguros londrino que se expressava numa língua europeia e escrevia romances inusitados num país neotropical escravista. Diante do delírio colonial que o cercava, um eventual retoque de luz ou o fato de ele se enxergar ou não como “branco” são questões desproporcionalmente pequenas.
Se a forma de lidar com a mestiçagem no Brasil foi – como tudo mais – pautada pelo racismo escravocrata, é o caso de rever esse racismo, não de encarar a miscigenação de maneira simplista, muito menos fingir que ela não existe.
Mas a última parece ser a opção por aqui ultimamente: substituir a histórica sutileza das relações étnicas no país – porque elas muitas vezes foram, sim, perversas – pela abordagem bôer do apartheid e pela paranoia americana embarcada na bizarra “regra de uma gota”. Um caso emblemático e recente foi o de Marilena Chauí, autodeclarada "parda" e homenageada juntamente com colegas negros de sua universidade.
O fetiche africânder do binarismo tem tornado as discussões de gênero mais dramáticas e menos sofisticadas do que poderiam ser e, tão transplantado quanto as frases terminadas em “falar sobre”, chegou para empobrecer o debate da questão étnica.
Algum ditador caribenho uma vez comentou, num momento inspirado, que o catolicismo na AméricaLatina Neotropical é uma questão de raça, não de religião. Típico católico ateu, eu concordei a contragosto.
O fetiche africânder do binarismo tem tornado as discussões de gênero mais dramáticas e menos sofisticadas do que poderiam ser e, tão transplantado quanto as frases terminadas em “falar sobre”, chegou para empobrecer o debate da questão étnica.
Algum ditador caribenho uma vez comentou, num momento inspirado, que o catolicismo na América
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| Deram uma desbotada foi no Luís |
Subverter conceitos canônicos, como a melhor vanguarda propõe suspender as ideias de gêneros inatos, talvez seja mais uma das muitas contribuições desta região para o mundo velho.
Torço para que no ano que vem os dois heróis da pátria (coincidência alfabética ou não, listados lado a lado no portal do Senado) sejam mais lembrados por suas façanhas a despeito das adversidades, e que não se insinue, de novo, que o maior literato negroide (de literatura branca) da história padecia de falta de letramento racial.
Torço para que no ano que vem os dois heróis da pátria (coincidência alfabética ou não, listados lado a lado no portal do Senado) sejam mais lembrados por suas façanhas a despeito das adversidades, e que não se insinue, de novo, que o maior literato negroide (de literatura branca) da história padecia de falta de letramento racial.








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