Quem não viu está perdendo "Piratas do Vale do Silício", um filme de 99 sobre a disputa pelo mercado de computadores domésticos (não chegavam a ser bem "pessoais" ainda). Tem boas histórias e diverte. De tom mais jornalístico, o documentário "O Triunfo dos Nerds: a ascensão de impérios acidentais", do Bob Cringely, também é interessantíssimo, e em certa medida detalha os eventos do outro filme, trazendo entrevistas com a maioria dos envolvidos. Foi produzido para a televisão em 1996, bem próximo dos fatos.
A "corrida" do desktop foi um tema que me interessou bastante durante anos, então, além desses filmes, li e assisti a bastante material adicional, inclusive às fantásticas apresentações sobre o computador Alto e seu sistema Star, da Xerox.
No frigir dos ovos, saí com a impressão de que Steve Jobs era brilhante, porém implacável e até traiçoeiro com seus colaboradores. Oscilei entre a sua presciência do protagonismo que os PCs teriam na vida das pessoas - antevendo, por exemplo, que as pessoas guardariam até suas músicas em computadores, quando eles ainda eram caixotes que só processavam fórmulas escritas - e a suspeita de que ele era um vendedor muito mais talentoso do que inventor.
Sempre respeitei o capricho com a experiência de uso dos produtos que alardeou. Já o papo de conjurar os artistas e criativos para minar as grandes corporações, derrubar o grande irmão etc. me pareceu um truque rasteiro desde o início. Por outro lado, com menos alarde, ele arrebatou o poder de uma indústria talvez ainda mais poderosa do que a IBM dos anos 80: o conjunto da indústria fonográfica, ao lançar a iTunes Music Store, oferecendo a revolucionária possibilidade de comprar faixas avulsas.
A "corrida" do desktop foi um tema que me interessou bastante durante anos, então, além desses filmes, li e assisti a bastante material adicional, inclusive às fantásticas apresentações sobre o computador Alto e seu sistema Star, da Xerox.
No frigir dos ovos, saí com a impressão de que Steve Jobs era brilhante, porém implacável e até traiçoeiro com seus colaboradores. Oscilei entre a sua presciência do protagonismo que os PCs teriam na vida das pessoas - antevendo, por exemplo, que as pessoas guardariam até suas músicas em computadores, quando eles ainda eram caixotes que só processavam fórmulas escritas - e a suspeita de que ele era um vendedor muito mais talentoso do que inventor.
Sempre respeitei o capricho com a experiência de uso dos produtos que alardeou. Já o papo de conjurar os artistas e criativos para minar as grandes corporações, derrubar o grande irmão etc. me pareceu um truque rasteiro desde o início. Por outro lado, com menos alarde, ele arrebatou o poder de uma indústria talvez ainda mais poderosa do que a IBM dos anos 80: o conjunto da indústria fonográfica, ao lançar a iTunes Music Store, oferecendo a revolucionária possibilidade de comprar faixas avulsas.
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| O complicado iTunes, que dava acesso à compra de faixas avulsas |
Steve Jobs me parecia ter um ou dois parafusos a menos quando lia sobre as fases de comer um alimento só, sentar-se no chão por não suportar a ideia de uma cadeira ou sofá que não considerasse perfeito, a ideia de que não precisaria de desodorante porque só comia maçã, os rumores de que tratava o câncer de pâncreas com acupuntura e dieta. Acompanhei algumas das apresentações de produtos da Apple: os discursos ensaiados continham o máximo de palavras superlativas e histriônicas. Lembro particularmente um lançamento em que disse que "o teclado do iPad é um sonho de digitar", com o que nem o maior entusiasta do (excelente) aparelho deve concordar.
Do outro lado, o sucesso da Microsoft era autoevidente. Enquanto Jobs criou um império baseado em sua obsessão por "produtos perfeitos", Gates, sob os olhos tanto da IBM quanto da Apple, sacou, profeticamente, que o software é o mais importante. A guerra pelo mercado de microcomputadores foi vencida por uma empresa que nunca vendeu uma máquina (pelo menos até 2015). E o seu butim não parou com as primeiras versões do Windows - o projeto "um computador em cada escrivaninha, em cada lar" - foi levado a cabo com folga, chegando mais perto de um computador para cada pessoa.
Longe do assunto havia anos, assisti, meio por tédio, à entrevista completa de Bob Cringely com Steve Jobs para O Triunfo dos Nerds, lançada em 2012 de maneira avulsa. E aí, devo admitir, passei cerca de uma hora sob o efeito hipnótico do discurso daquele sujeito. Seus meneios são elegantes, lentos; as pausas para reflexão são convincentes. Sente-se como se ele nunca tivesse revelado aquilo a ninguém, como se alguém tivesse gravado um testemunho de final de noite no último boteco.
Steve Jobs é tão convincente que consegue dizer o chavão "o verdadeiro patrimônio de uma empresa são as pessoas que nela trabalham" sem parecer forçado, entremeando-o num relato sobre suas visitas à Hewlett-Packard quando ainda menino. Por meio dessas crônicas, descobrimos como ele configura o estereótipo de homem do Vale do Silício e da baía de São Francisco, havendo crescido cercado por todos os focos da seminal revolução da informática que se operaria ali. Essa candura é particularmente evidente quando ele menciona Steve Wozniak e narra o episódio das caixinhas azuis que desenvolveram para enganar a cia. telefônica e fazer interurbanos de graça. Ele olha para o teto, gagueja, procura palavras, como se a recordação acabasse de lhe ocorrer.
Quando perguntado sobre os sobressaltos em sua carreira, a ascensão da Microsoft, o estado de coisas na Apple e seu trabalho na Next, ele exibe uma honestidade palpável. Produz uma análise do mercado fantástica para explicar que, na Xerox, a interface gráfica de usuário lá desenvolvida nunca veria a luz do dia, porque o negócio principal da empresa era outro e, sobretudo, gozava de posição quase monopolística. Convence quando diz que, se não tivesse pirateado a inovação da Xerox, seriam os usuários do mundo a perder. "Quando se conquista um monopólio, o desenvolvimento de produtos fantásticos [pelo jeito o uso de termos superlativos era uma idiossincrasia] fica em segundo plano. Mercado e vendas são o foco, e as pessoas desses setores ascendem à cúpula da empresa, deixando desenvolvimento e engenharia em segundo plano." Também discorre sobre como a IBM aperfeiçoou a gestão de processos ao extremo, habilidade que pouco ajuda na invenção de produtos excelentes. Fala sobre o controle de custos, sobre como a contabilidade corporativa era obscura e alienada, em contraste com a consciência aguda do preço de cada coisa na Apple.
A lucidez da análise do mercado de informática por um homem que acreditava não transpirar desde que só comesse maçãs é admirável. Mas a sua mágica sobressai mesmo ao entrar no mérito do seu trabalho, sobre os computadores e a revolução que representam. Como falam da aritmética, ensina que programar aguça o processo de pensamento e o raciocínio. Explica como o Homem não se sai muito bem em termos de eficiência energética para locomoção, comparado a outros animais. Porém, quando se mede a sua locomoção de bicicleta, é campeão absoluto. O computador seria a bicicleta do cérebro.
Sustenta que a diferença de desempenho e qualidade na maioria das indústrias e serviços é marginal. Algo duas vezes melhor que a concorrência, por exemplo, é auspicioso. Já no ramo da informática, a diferença entre o melhor e o pior pode ser de 50, até 100 vezes. Por isso frisa que sempre buscou os campeões absolutos para formar as equipes que dirigia. Por isso, perguntado por que era às vezes um escroto com eles, explica que eles são tão exímios - e sabiam disso - que ele não precisava se preocupar muito em ferir o seu ego.
Ao falar sobre o primeiro Macintosh, explica que a ideia era vendê-lo por cerca de 1000 dólares, mas lamentavelmente, o preço final teve que ser de 2500. Esse pesar sobre a carestia do produto contrasta com o status atual de certos produtos da Apple, eleitos como ícones de consumo conspícuo, porém me fez acreditar que ele de fato queria levar o melhor ao maior número de pessoas.
Falando sobre coisas então mais recentes, acerta quanto ao papel central da internet no ramo, mais uma vez em contraste com a miopia de Gates, que chegou a dizer que a internet era uma moda, que passaria como as BBS. Mostrando que entende do riscado, repassa os percentuais de vendas por catálogo e por telefone nos EUA (altíssimos) e anuncia a web como o grande catálogo mundial, potencializando essa forma de comércio. Seria a grande oportunidade de cada negócio de alcançar seu freguês diretamente.
Discorre ainda sobre o poder do software na automação, não só das corporações mas também dos menores negócios e do setor de serviços, conjeturando sobre as infinitas possibilidades adiante. "Esse sujeito entendia o que estava acontecendo!", pensa-se ao comparar sua análise de então com o que de fato aconteceu no mundo depois.
Saí com a impressão renovada de que Jobs reunia talentos muito raros. Muitas pessoas têm alta capacidade técnica ou analítica. Mas poucas conseguem acumular também a capacidade de enxergar o contexto maior daquilo que fazem, poucas são hábeis quanto aos detalhes e lúcidas quanto ao panorama geral. Quem as reúne geralmente consegue liderar outras para realizar grandes coisas. Jobs entendia de eletrônica e programação, e conseguia, além disso, liderar projetos complicadíssimos, gerindo talentos levados ao extremo desempenho.
Steve Jobs, porém, para além dos dois talentos raros, parecia ter visão. A par de enxergar os processos "de cima", entendê-los, seria capaz de refletir sobre como se articulavam, vislumbrar a sua tendência geral. Com esses três atributos, explica-se porque se tornou uma espécie de profeta prático. Ele me convenceu de que enxergou uma revolução no nascedouro, imaginou como ela deveria acontecer e a fez acontecer quase exatamente como em suas antevisões. De kits de montar máquinas com solda e parafusos até o iPhone. Impressionante.
Passados alguns dias de ter assistido ao filme, porém, o efeito deixou de ser tão evidente e cresceu a suspeita de que o sales pitch (o papo de vendedor, algo como o que chamamos de "saber vender o peixe") de Steve Jobs não se limitava aos produtos, mas alcançava a própria forma de contar sua história, sua personalidade e estilo de liderança. O Netflix me sugeriu então outro documentário, "Man In the Machine", também sobre Jobs e a Apple, e "Silicon Cowboys", sobre a história da Compaq.
De fato, minhas impressões mudaram. Talvez ainda mais engenhosa do que a concepção de produtos geniais é a persona que Jobs criou para si. Posso pontuar que:
Do outro lado, o sucesso da Microsoft era autoevidente. Enquanto Jobs criou um império baseado em sua obsessão por "produtos perfeitos", Gates, sob os olhos tanto da IBM quanto da Apple, sacou, profeticamente, que o software é o mais importante. A guerra pelo mercado de microcomputadores foi vencida por uma empresa que nunca vendeu uma máquina (pelo menos até 2015). E o seu butim não parou com as primeiras versões do Windows - o projeto "um computador em cada escrivaninha, em cada lar" - foi levado a cabo com folga, chegando mais perto de um computador para cada pessoa.
Longe do assunto havia anos, assisti, meio por tédio, à entrevista completa de Bob Cringely com Steve Jobs para O Triunfo dos Nerds, lançada em 2012 de maneira avulsa. E aí, devo admitir, passei cerca de uma hora sob o efeito hipnótico do discurso daquele sujeito. Seus meneios são elegantes, lentos; as pausas para reflexão são convincentes. Sente-se como se ele nunca tivesse revelado aquilo a ninguém, como se alguém tivesse gravado um testemunho de final de noite no último boteco.
Steve Jobs é tão convincente que consegue dizer o chavão "o verdadeiro patrimônio de uma empresa são as pessoas que nela trabalham" sem parecer forçado, entremeando-o num relato sobre suas visitas à Hewlett-Packard quando ainda menino. Por meio dessas crônicas, descobrimos como ele configura o estereótipo de homem do Vale do Silício e da baía de São Francisco, havendo crescido cercado por todos os focos da seminal revolução da informática que se operaria ali. Essa candura é particularmente evidente quando ele menciona Steve Wozniak e narra o episódio das caixinhas azuis que desenvolveram para enganar a cia. telefônica e fazer interurbanos de graça. Ele olha para o teto, gagueja, procura palavras, como se a recordação acabasse de lhe ocorrer.
Quando perguntado sobre os sobressaltos em sua carreira, a ascensão da Microsoft, o estado de coisas na Apple e seu trabalho na Next, ele exibe uma honestidade palpável. Produz uma análise do mercado fantástica para explicar que, na Xerox, a interface gráfica de usuário lá desenvolvida nunca veria a luz do dia, porque o negócio principal da empresa era outro e, sobretudo, gozava de posição quase monopolística. Convence quando diz que, se não tivesse pirateado a inovação da Xerox, seriam os usuários do mundo a perder. "Quando se conquista um monopólio, o desenvolvimento de produtos fantásticos [pelo jeito o uso de termos superlativos era uma idiossincrasia] fica em segundo plano. Mercado e vendas são o foco, e as pessoas desses setores ascendem à cúpula da empresa, deixando desenvolvimento e engenharia em segundo plano." Também discorre sobre como a IBM aperfeiçoou a gestão de processos ao extremo, habilidade que pouco ajuda na invenção de produtos excelentes. Fala sobre o controle de custos, sobre como a contabilidade corporativa era obscura e alienada, em contraste com a consciência aguda do preço de cada coisa na Apple.
A lucidez da análise do mercado de informática por um homem que acreditava não transpirar desde que só comesse maçãs é admirável. Mas a sua mágica sobressai mesmo ao entrar no mérito do seu trabalho, sobre os computadores e a revolução que representam. Como falam da aritmética, ensina que programar aguça o processo de pensamento e o raciocínio. Explica como o Homem não se sai muito bem em termos de eficiência energética para locomoção, comparado a outros animais. Porém, quando se mede a sua locomoção de bicicleta, é campeão absoluto. O computador seria a bicicleta do cérebro.
Sustenta que a diferença de desempenho e qualidade na maioria das indústrias e serviços é marginal. Algo duas vezes melhor que a concorrência, por exemplo, é auspicioso. Já no ramo da informática, a diferença entre o melhor e o pior pode ser de 50, até 100 vezes. Por isso frisa que sempre buscou os campeões absolutos para formar as equipes que dirigia. Por isso, perguntado por que era às vezes um escroto com eles, explica que eles são tão exímios - e sabiam disso - que ele não precisava se preocupar muito em ferir o seu ego.
Ao falar sobre o primeiro Macintosh, explica que a ideia era vendê-lo por cerca de 1000 dólares, mas lamentavelmente, o preço final teve que ser de 2500. Esse pesar sobre a carestia do produto contrasta com o status atual de certos produtos da Apple, eleitos como ícones de consumo conspícuo, porém me fez acreditar que ele de fato queria levar o melhor ao maior número de pessoas.
Falando sobre coisas então mais recentes, acerta quanto ao papel central da internet no ramo, mais uma vez em contraste com a miopia de Gates, que chegou a dizer que a internet era uma moda, que passaria como as BBS. Mostrando que entende do riscado, repassa os percentuais de vendas por catálogo e por telefone nos EUA (altíssimos) e anuncia a web como o grande catálogo mundial, potencializando essa forma de comércio. Seria a grande oportunidade de cada negócio de alcançar seu freguês diretamente.
Discorre ainda sobre o poder do software na automação, não só das corporações mas também dos menores negócios e do setor de serviços, conjeturando sobre as infinitas possibilidades adiante. "Esse sujeito entendia o que estava acontecendo!", pensa-se ao comparar sua análise de então com o que de fato aconteceu no mundo depois.
Saí com a impressão renovada de que Jobs reunia talentos muito raros. Muitas pessoas têm alta capacidade técnica ou analítica. Mas poucas conseguem acumular também a capacidade de enxergar o contexto maior daquilo que fazem, poucas são hábeis quanto aos detalhes e lúcidas quanto ao panorama geral. Quem as reúne geralmente consegue liderar outras para realizar grandes coisas. Jobs entendia de eletrônica e programação, e conseguia, além disso, liderar projetos complicadíssimos, gerindo talentos levados ao extremo desempenho.
Steve Jobs, porém, para além dos dois talentos raros, parecia ter visão. A par de enxergar os processos "de cima", entendê-los, seria capaz de refletir sobre como se articulavam, vislumbrar a sua tendência geral. Com esses três atributos, explica-se porque se tornou uma espécie de profeta prático. Ele me convenceu de que enxergou uma revolução no nascedouro, imaginou como ela deveria acontecer e a fez acontecer quase exatamente como em suas antevisões. De kits de montar máquinas com solda e parafusos até o iPhone. Impressionante.
Passados alguns dias de ter assistido ao filme, porém, o efeito deixou de ser tão evidente e cresceu a suspeita de que o sales pitch (o papo de vendedor, algo como o que chamamos de "saber vender o peixe") de Steve Jobs não se limitava aos produtos, mas alcançava a própria forma de contar sua história, sua personalidade e estilo de liderança. O Netflix me sugeriu então outro documentário, "Man In the Machine", também sobre Jobs e a Apple, e "Silicon Cowboys", sobre a história da Compaq.
De fato, minhas impressões mudaram. Talvez ainda mais engenhosa do que a concepção de produtos geniais é a persona que Jobs criou para si. Posso pontuar que:
- A história da "corrida do desktop" é bem mais complicada do que as intrigas no triângulo IBM, Apple e Microsoft.
- A grande sacada da Microsoft - o importante é o software! - não foi só um lance de sorte, porque a empresa fez essa aposta duas vezes, com impactos igualmente gigantes: da primeira vez, quando reteve os direitos sobre seu DOS ao licenciá-lo para a IBM; e da segunda, menos falada porém ainda mais relevante, quando se alinhou com a "Gangue dos Nove", liderada pela Compaq, para apoiar o padrão comum EISA em oposição ao PS/2, exclusivo da IBM (a quem devia boa parte de seu sucesso e fortuna, ressalte-se), salvando de fato a concorrência no mercado de PCs.
- Em segunda audiência, a história do exato momento de início da Apple é bastante forçada. É praticamente inacreditável que o objetivo de adquirir circuitos impressos para profissionalizar a montagem dos Apple II fosse "vender aos amigos a preço de custo, e assim todo mundo ficaria feliz", como disse na entrevista. Também é muito improvável que a Byte Shop (loja pioneira de peças de computador) tenha espontaneamente feito uma oferta para 50 unidades da máquina. Jobs certamente o hipnotizou com seu sales pitch. O próprio Steve Wozniak, que foi passado para trás por ele quando programou o jogo “Breakout" para a Atari, deixou claro que a Apple nunca funcionou numa garagem, frisando que Jobs sempre foi eminentemente um empresário.
- Nessa linha, o chavão "nunca foi pelo dinheiro" é bem pouco convincente.
- Em entrevistas com pessoas que trabalharam no projeto do primeiro Macintosh, fica claro um deslumbramento de neófito, um compromisso místico com um projeto de mudar o mundo. Os primeiros destinatários do sales pitch messiânico-hipnótico de Jobs eram os próprios empregados. Tachá-los de "artistas" parecia impeli-los de uma forma distinta da motivação de ser o no. 1 do mercado, além de contribuir para a aura transcendente que ele meticulosamente construiu para os produtos da Apple, associando-os à criatividade e a uma contracultura.
- A tipologia é uma obsessão evidente de Steve Jobs. Se estivesse delimitada ao mercado de editoração e impressão a laser, seria compreensível. Mas o vulto que ele atribui ao espaçamento variável das letras nas telas do computador é obviamente desproporcional na linha de evolução do desktop.
- O computador Lisa tinha o objetivo declarado de conquistar os pequenos negócios, no que fracassou, provavelmente em razão do preço. Isso provavelmente foi um gatilho para reforçar o foco no usuário "criativo" e na mística artística. Mas é clara a impressão de que, se a Apple alguma vez tivesse conquistado uma fração dos usuários profissionais da IBM ou da Microsoft, o sales pitch de Jobs teria certamente explorado o fato, com termos grandiloquentes, até a última gota. A expressão azeda que adota ao comentar a hegemonia da Microsoft o deixa claro.
- A repetição obsessiva da ideia de trabalhar "com os melhores entre os melhores", a reafirmação de que aquelas pessoas não eram boas empregadas de uma empresa de informática mas sim gênios de diferentes planos do conhecimento que por acaso faziam computadores parece estar alinhada à estratégia de atribuir ares messiânicos a projetos corporativos. Percebeu que as pessoas de alto desempenho não raro se superam e florescem sob pressão, constatação que explorou com naturalidade, visto que, conforme relatos de pessoas próximas, ele ostentava um nível de empatia abaixo da média.
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| A loja que fez a primeira grande encomenda da Apple |
Ainda não há vencedor para a guerra do desktop, que hoje prossegue entre celulares e assistentes de voz. Daí ser tão difícil tirar conclusões sobre a própria personalidade e o gênio controverso de Jobs. Já disseram que a pequena Apple venceu a gigante IBM, e Jobs admitiu a derrota para a Microsoft. Mas hoje a IBM desenvolve o Watson, plataforma de inteligência artificial com potencial de efetivamente transformar a vida das pessoas, enquanto a Apple fabrica gadgets, ainda que luxuosos e eficientes.
A construção da Apple como fabricante de artigos de luxo, de fornecedora de pequenas extravagâncias de consumo, é claramente deliberada. Jobs nunca quis alcançar o máximo de pessoas, e o fato de que a margem de lucro de um iPhone logo chegou a 300 dólares é eloquente. De lembrar que o preço do Macintosh foi simplesmente cortado pela metade quando a Compaq entrou forte no mercado. Jobs nunca almejou a massa dos usuários que levam o preço em consideração.
Em outro documentário, vi imagens da década de 70 em que Jobs destila quase palavra por palavra as mesmas sentenças proféticas sobre liderar gênios e suas visões para as caixinhas de burlar a cia. telefônica que ofereceria na entrevista a Bob Cringely, décadas depois, o que sugere que talvez se aferrasse tão profundamente a seus slogans e mantras que chegava ao ponto de neles acreditar, pondo-os em prática.
A construção da Apple como fabricante de artigos de luxo, de fornecedora de pequenas extravagâncias de consumo, é claramente deliberada. Jobs nunca quis alcançar o máximo de pessoas, e o fato de que a margem de lucro de um iPhone logo chegou a 300 dólares é eloquente. De lembrar que o preço do Macintosh foi simplesmente cortado pela metade quando a Compaq entrou forte no mercado. Jobs nunca almejou a massa dos usuários que levam o preço em consideração.
Em outro documentário, vi imagens da década de 70 em que Jobs destila quase palavra por palavra as mesmas sentenças proféticas sobre liderar gênios e suas visões para as caixinhas de burlar a cia. telefônica que ofereceria na entrevista a Bob Cringely, décadas depois, o que sugere que talvez se aferrasse tão profundamente a seus slogans e mantras que chegava ao ponto de neles acreditar, pondo-os em prática.
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| Steve revisita, em 1995, alguns de seus insights dos anos 70 |
A sua habilidade de lançar antes da concorrência produtos com nível de acabamento muito alto é admirável. Não sei quanto custava um iPhone em 2007, mas, se custasse mil dólares, valeria o preço, porque simplesmente não havia alternativa parecida, e não houve durante longos anos. O iPad, por exemplo, não só estava muito adiante dos futuros concorrentes como manteve sua folga por tanto tempo que o ciclo de alta demanda por tablets encerrou-se (provavelmente por causa das telas maiores dos celulares) antes que alguém o ameaçasse. Talvez, nesses casos, a diferença de 50 para 1 a que ele se refere seja pertinente.
Nesse ponto da entrevista, é difícil não concordar com Jobs. Ele explica porque o iPad é tão melhor do que os PC de tela sensível da Microsoft: eles simplesmente portaram a estrutura e o sistema do desktop para o tablet. Então vêm com o peso e as limitações de bateria do computador, e precisam de caneta para obter a precisão da seta do mouse. Já o iPad foi pensado para aquele formato desde o início.
Pessoalmente, nunca senti tanto fascínio pelos artigos da Apple, sem deixar de reconhecer o excelente nível de acabamento e de experiência de uso. Lembro de cobiçar o iPod pela capacidade de armazenamento revolucionária, que depois deixou de ser tão diferencial. Porém, um dispositivo me cativou durante alguns anos: os Macintoshes da época do OS 10.5 a 10.10, da segunda metade da década de 2000. As máquinas eram muito bonitas, e a suposta estabilidade inabalável do sistema parecia a terra prometida para quem sofreu os Windows 3.X e 95. Vejo aquele sistema operacional, com suas sombras profundas e o esqueuemorfismo atenuado, anterior à transição para um estilo ditado pela interface do iPhone, como o ápice da computação de mesa.
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| Mac OS 10.6: insuperável? |
Embora nunca tenha usado um iPhone como meu próprio celular, já os manuseei bastante, e é de se admirar o capricho no acabamento do sistema: lembro-me de, uma vez, tentar usar um aplicativo pesado. Na falta de memória, o programa simplesmente se fechou, numa animação suave e impecável, dando-me a impressão de que eu havia feito algo de errado ou dado aquele comando sem querer. Em outro aparelho eu provavelmente veria pular uma janela com uma exclamação e termos técnicos nessa situação.
Steve Jobs criou uma mística tão poderosa em torno dos produtos da empresa - mesclando alta qualidade de acabamento e uma capacidade de convencimento enorme - que sua freguesia fiel mantinha-se disposta a pagar o preço desproporcional do início mesmo após a concorrência haver alcançado a empresa.
Com a morte de Jobs, é interessante notar que a aura de qualidade insuperável da empresa tem se preservado quase incólume. Porém, fica óbvio que o seu tino faz falta: ao aderir à moda dos smartwatches, a Apple fez exatamente o que viu a Microsoft tentar com os tablets - simplesmente transpôs um iPhone, com seus numerosos ícones, para uma tela de pulso. Retangular. Espessa.
Até quando a mística em torno da Apple sustentará vendas de produtos desajeitados como seus relógios, ou excessivamente caros, como são quase todos, é difícil prever. Como for, a contribuição de Jobs e os produtos bem pensados da empresa para a forma de computação atual é inestimável.





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