Em Pour la peau, duas pessoas que trabalham em empresas distintas, porém no mesmo prédio, encontram-se por acaso numa festa nas dependências do edifício. Sem trocar muitas palavras, vão a um banheiro e começam uma rotina de encontros silenciosos, simples na logística e sofisticados na exploração do sexo. São casados, mas não entre si.
É convincente que a ausência de rituais de corte e sedução os empurre para um arrebatamento continuado de desfrute físico desassociado de expectativas e maquinações românticas. Nesse espaço, as possibilidades e as sensações cruas do sexo dominam os pensamentos de ambos os protagonistas de modo parecido ao abuso de substâncias entorpecentes.
É convincente que a ausência de rituais de corte e sedução os empurre para um arrebatamento continuado de desfrute físico desassociado de expectativas e maquinações românticas. Nesse espaço, as possibilidades e as sensações cruas do sexo dominam os pensamentos de ambos os protagonistas de modo parecido ao abuso de substâncias entorpecentes.
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| Mathilde se torna "um verdadeiro vício" |
O álbum delineia bem a obsessão erótica como uma enfermidade. E dá o que pensar: se uma febre ou depressão deformam a perspectiva do paciente num sentido, de modo que o pior trabalho, uma fila de hospital, uma missa, qualquer coisa seria preferíveis àquele padecimento, a concupiscência obsessivo-compulsiva a deforma em outro: tudo que é prático e ordinário deixa de ter sentido e interesse, empalidece à sombra daquele frisson.
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Gabriel com uma ereção inconveniente... |
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| ... como é o trabalho em geral quando se tem uma obsessão a nutrir. |
Os dois pontos de vista da história não ilustrados com cores de fundo distintas, um recurso muito usado para diferenciar sonhos ou flashbacks nos quadrinhos. Embora sonhos propriamente ditos não sejam parte da narrativa, um paralelo mais interessante pode estar escondido nesse recurso que permeia as pranchas expressivas, ainda que de traços meio toscos.
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| Mathilde em dificuldades para aplacar sua fissura no ambiente de trabalho |
Às vezes, durante um sonho, percebemos o poder de dirigir a sua narrativa, ou pelo menos influenciar os fatos de forma mais eficaz do que na vida desperta. Na maioria das vezes, porém, vivem-se os sonhos em tom realista, sem a consciência de que são ilusões.
O amor das gônadas, experimentado inicialmente pelo casal de Pour la peau, é um sonho do tipo comum - nenhum dos dois imagina que ele possa se esvair junto com as emissões orgásticas. Invertendo a sequência do amor romântico, porém, dessa culminação física gradualmente afloram sentimentalidades em outros planos.
Afinal, o amor do priapismo é sincero, apaixonado e romântico; é lírico, invencível e eterno. A paixão de cobiça é verdadeira como um choro de bebê, é uma profissão de fé, motiva poemas e façanhas como os maiores amores das grandes histórias. O amor do baixo ventre não é óbvio como um filme pornográfico sem narrativa, ao contrário do que uma moral resquicial, que separa o amor ideal da concupiscência, nos quer muitas vezes fazer crer. É terno e pio, mistura planos de matrimônio aos arrebatamentos lúbricos e penetrações.
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Mathilde: "a bala que não derrete" |
Os protagonistas de Pour la peau vivem essa doença até o ponto em que os efeitos colaterais sentimentais e práticos se assomam. Então passam a encenar uma anedota típica do impasse da afetividade moderna, que sofre para conciliar o ideal do amor romântico e a vida contemporânea em sociedades democráticas.
O adultério já não é crime, não enseja apedrejamento, açoite, ostracismo social - silenciou-se como um dilema da vida privada. O sexo não assusta mais ninguém. Já não há mais nada a provar, barreiras a romper, ninguém a chocar. Faz-se o que quiser, e os relacionamentos não funcionam como na receita romântica. Que fazer quando não há ninguém mais contra se rebelar? Que sobra quando tudo é possível?
A reposta da autora parece estar relacionada a como pode uma espécie com um período de maturação tão comprida prescindir de estabilidade quanto aos pais. Provado que a libido feminina é pouco diferente da masculina, ou seja, não tende indefinidamente à exclusividade, seríamos todos naturalmente bastardos? Destinados a sermos criados por quem estiver por perto, na aldeia?
No álbum, os protagonistas reagem. Ele, ao entrar em um café, segura a porta para um casal velhinho, e se comove com a longevidade daquela parceria cúmplice. Ela sonha com seu bebê durante as sugestivas aulas de natação.
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| Gabriel pondera a suposta falta de sentido da relação |
Em determinado ponto, eles decidem experimentar a etapa seguinte, tecer uma terceira vida em paralelo às que seguiam com os respectivos cônjuges. Em vão: as grandes obrigações e expectativas acenam para eles e tudo se esboroa, sem que ele saiba os pormenores da aparente resolução que ela adota.
Ao final do livro, a evocação do sonho volta com força porque a memória sensorial precisa de um tempo para absorver e consolidar essa espécie de experiência. Quando tudo acontece tão rápido e de maneira tão intensa, e se as circunstâncias mudam bruscamente antes que o processo se complete, essas vivências costumam ficar registradas num tom alternativo, onírico, como uma informação sobre alguém que passou por coisas inusitadas, e que a pessoa só sabe tratar-se de si mesma porque foi a única testemunha.
| A lembrança fugidia de Mathilde, que "desapareceu" antes que as recordações se consolidassem |
Os personagens de Pour la peau transitam entre o potencial inspirador de escrever, de próprio punho, um roteiro arrebatado e aventuresco, distinto de suas vidas de classe média, e o exercício da prerrogativa liberal ocidental, isenta de culpa, de varrer aquele interlúdio para debaixo do tapete. Não oferece muitas conclusões, mas explora questões que estão "no ar dos tempos".
Serviço:
Autora: Sandrine Saint-Marc
Desenhista e colorista: Deloupy
Editora Delcourt (2018)
Preço de capa: €17,50






