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Introdução à arte

Repassando minha pasta de escritos, encontrei, em "traduções", a introdução ao primeiro volume de "História da Arte", dedicado à arte antiga, de Élie Faure.

Trata-se de uma tripla façanha: um homem, que também é um artista, consegue dar um passo atrás e explicar, nos termos mais evidentes possíveis, o que é o fenômeno da arte, e por consequência descrever um aspecto fundamental da condição do Homem, indissociável dela.

É o mais próximo que se conseguiria chegar de explicar, a alguém teoricamente desprovido de qualquer emoção, a experiência estética, o ímpeto teimoso da expressão e a capacidade de tudo sintetizar do produto artístico 

Obrigado, Dr. Faure.

Em contraste com o tom acadêmico, anódino e pasteurizado dos ensaios contemporâneos, Faure não hesita em usar termos como espírito, sensibilidade, raça, instintos e inteligência para compor um texto que comove pela força e convence pelo acerto.

É um texto culto, que já bebe das descobertas mais importantes da virada dos 1900, mas que poderia ser lido num palanque e arrebataria hoje de operários a "youtubers". Nas fileiras de trás, provavelmente enxugariam lágrimas também cativos do egito, sábios mandarins, eremitas hindus e aldeões feudais.

(Minha tradução é anterior à vigência do acordo ortográfico de 1990/2016.)


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ÉLIE FAURE

História da Arte
A Arte Antiga


Introdução à primeira edição – 1909


A arte, que exprime a vida, é misteriosa como ela. Escapa, como esta, a qualquer fórmula. Mas a necessidade de defini-la nos persegue, porque ela se mescla a todas as horas de nossa existência ao enaltecer seus espetáculos por meio de suas formas mais elevadas ou aviltá-los por suas formas mais decadentes. Por maior que seja nossa resistência ao esforço de escutar e de olhar, é-nos impossível não ouvir ou ver, é-nos impossível abdicar de fato a formar uma opinião qualquer sobre o mundo das aparências, cujo sentido é precisamente a missão da arte revelar. Os historiadores, os moralistas, os biólogos, os metafísicos, todos que indagam da vida o segredo das suas origens e de seus fins são levados, cedo ou tarde, a investigar por que nós nos encontramos nas obras que a manifestam. Mas eles nos obrigam a restringir nossa visão quando entramos na imensidão movediça do poema que o homem canta, esquece, recomeça a cantar e a esquecer desde que é homem, nos limites demasiadamente estreitos da biologia, da metafísica, da moral, da história. Ora, o sentimento da beleza é solidário de todas essas coisas ao mesmo tempo, e sem dúvida também os domina e os conduz à unidade possível e desejada de toda nossa atividade humana, que só ele é capaz de realizar.

Somente escutando o coração é que podemos falar da arte sem diminuí-la. Todos portamos nossa cota de verdade, mas a ignoramos se não temos o desejo apaixonado de investigá-la e se não experimentamos nenhum entusiasmo em dizê-la. Aquele que deixa cantar em si as vozes divinas, somente ele sabe respeitar o mistério da obra em que esgotou a necessidade de partilhar com os outros homens a sua comoção. Michelet não traiu os operários góticos ou Michelangelo, porque a paixão que eleva a nave das catedrais ou desfecha sua fúria nos arcos da Sistina o devorava. Baudelaire penetrou até o foco de onde irradia em força e em luz o espírito dos heróis porque é um grande poeta. E se as idéias de Taine não estão mortas com ele é porque sua natureza de artista supera sua vontade, e seu rigor dogmático é inundado pelo fluxo sempre renovado das sensações e das imagens.

Ela apareceu na hora em que aprendíamos que nosso destino estava ligado aos atos daqueles que nos antecederam no caminho e à própria estrutura da terra em que nascemos.  Ela tinha o direito de ver o formato de nosso pensamento sair do molde da história. “A arte resume a vida”. Ela entra em nós com a força dos nossos solos, com a cor dos nossos céus, através das preparações atávicas que a determinam, as paixões e as vontades dos homens que ela define. Empregamos na expressão das nossas idéias os materiais que nosso olhar alcança e que nossas mãos conseguem tocar. É impossível que Phidias e Rembrandt, o escultor que vive à luz do Midi, em meio a um mundo aguçado, e o pintor que vive sob a névoa do Mar do Norte, em meio a um mundo flutuante, dois homens separados por vinte séculos no curso dos quais a humanidade viveu, sofreu, envelheceu, se sirvam das mesmas palavras... Somente é necessário que nos reconheçamos tanto em Rembrandt quanto em Phidias.

É nossa linguagem, e somente ela, que apreende e guarda a aparência daquilo que está ao nosso redor e que surpreende nossos sentidos. Nós poderíamos pedir à arte que nos ensinasse história, caso ela fosse apenas um reflexo das sociedades que passam com a sombra das nuvens no solo. Mas ela nos narra o homem, e o universo através dele. Ela ultrapassa o instante, ela amplia o lugar de toda a duração, de toda a compreensão do homem, de toda a duração e extensão do universo. Ela fixa a eternidade móvel na sua forma momentânea.

Ao nos narrar o homem, ela nos ensina nós mesmos. O estranho é que haja necessidade de nos dizê-lo. O livro de Tolstói[1] não significava outra coisa. Ele surgiu num momento doloroso em que, fortemente armados por nossa busca, mas desorientados ante os horizontes que ela abre e percebendo que nosso esforço se dispersou, tentamos confrontar os resultados obtidos para nos unirmos numa comum e marchar adiante. Nós pensamos e acreditamos naquilo que temos necessidade de pensar e de acreditar, é isso que confere a nossos pensamentos e crenças, no curso da história, esse fundo indestrutível de humanidade que todos eles têm. Tolstói disse o que era necessário dizer naquele momento.

A arte é um apelo à comunhão dos homens. Nós nos reconhecemos uns nos outros pelos ecos que ela evoca em nós, que nós transmitimos pelo entusiasmo e que ressoam em viva ação ao longo das gerações sem que estas, às vezes, suspeitem. Se alguns entre nós escutam sozinhos esse apelo nos períodos de incompreensão e de abatimento geral, é porque eles representam, nesses momentos, o esforço idealista que reanimará o heroísmo adormecido nas multidões. se disse que o artista se basta. Isso não é verdade. O artista que o diz é vítima de um orgulho ruim. O artista que acredita nisso não é um artista. Se não precisasse da mais universal das nossas linguagens, o artista não a teria criado. Numa ilha deserta, ele lavraria a terra para fazer crescer o pão. Ninguém tem mais necessidade da presença e da aprovação dos homens. Ele fala porque sente a presença deles ao seu redor, na esperança muitas vezes frustrada e jamais combalida de que eles acabarão escutando. É sua função expandir o seu ser, dar o máximo possível de sua vida a todas as vidas, exigir de todas as vidas que lhe dêem o máximo possível delas, realizar com elas, numa colaboração obscura e magnífica, uma harmonia tão mais emocionante quanto maior o número de vidas que venha a participar. O artista, a quem os homens entregam tudo, lhes devolve tudo que tomou.

Nada nos toca afora o que nos acontece ou que pode nos acontecer. O artista somos nós mesmos. Ele tem atrás de si as mesmas profundezas de humanidade entusiasta ou miserável, ele tem ao redor de si a mesma natureza secreta que engrandece cada um de seus passos.

O artista é a multidão à qual todos pertencemos, é quem nos define a todos com nosso consentimento ou a despeito de nossa revoltaEle não tem o poder de juntar as pedras da casa que constrói, sob risco de esmagar o torso ou dilacerar as mãos, em outra estrada que não aquela por onde seguimos nós, atrás dele. É preciso que ele sofra daquilo que causa nosso sofrimento, que nós o façamos sofrer. É preciso que ele ressinta nossas alegrias, que suas alegrias reflitam as nossas. É preciso que ele viva nossas aflições e nossas vitórias interiores, mesmo quando não as sentimos.

O artista não pode sentir e dominar seu meio senão sob a condição de tomá-lo como seu meio de criação. Somente assim ele nos dá a conhecer essas realidades permanentes que todos os fatos e todos os minutos revelam àqueles que sabem vê-los e vivê-los. Elas sobrevivem às sociedades humanas como a massa do oceano às agitações de sua superfície. A arte é sempre “um sistema de relações”, e um sistema sintético, mesmo a arte primitiva, que confessa, na acumulação infatigável do detalhe, a busca apaixonada de um sentimento essencial. Toda imagem, no fundo, é um resumo simbólico da idéia que o artista tem do mundo ilimitado das sensações e das formas, uma expressão do seu desejo de fazer reinar nesse mundo a ordem que ele sabe descobrir. A arte foi, desde suas origens mais humildes, a realização dos pressentimentos de alguns respondendo às necessidades de todos. Ela forçou o mundo a outorgar-lhe as leis que nos permitiram estabelecer progressivamente no mundo a realeza do nosso espírito. Emanada da humanidade, ela revelou à humanidade sua própria inteligência. Ela definiu as raças, ela carrega sozinha o testemunho de seu dramático esforço. Se queremos saber o que somos, é preciso que compreendamos o que ela é.

Ela é a precursora de realidades profundas cuja posse definitiva, se é que esta não mataria o movimento e com ele a esperança, permitiria à humanidade introduzir nela e ao redor dela a suprema harmonia que é a meta fugidia de seus esforços. Ela é algo infinitamente maior, sem dúvida alguma, do que imaginam os que não a compreendem, e muito mais prática do que pensam muitos dos que sentem a força de sua ação. Nascida da associação de nossas sensibilidades e de nossas experiências pela conquista de nós mesmos, ela nada tem, em todo caso, dessa distração desinteressada a que Kant, Spencer e o próprio Guyau quiseram limitar seu papel. Todas as imagens do mundo são para nós instrumentos úteis, e a obra de arte somente nos atrai porque reconhecemos nela nosso desejo formulado.

Confessamos espontaneamente que os objetos de utilidade primária, nossas roupas, nossos móveis, nossos veículos, nossas estradas, nossas casas nos parecem bonitos quando cumprem suas funções fielmente. Mas insistimos em posicionar acima, ou seja, fora da natureza, os organismos superiores em que ela se denuncia com mais interesse por nós mesmos: nosso corpo, nossa dosagem, nosso pensamento, o mundo infinito das idéias, paixões e paisagens em meio ao quais vivem, que eles definem e que os definem sem que possamos separá-los. Guyau não ia longe demais ao se perguntar se o gesto mais útil não seria o gesto mais belo e nós recuamos com ele ante a palavra decisiva como se ela fosse abafar nosso sonho, que entretanto sabemos imperecível, que não atingiremos jamais essa realização de nós mesmos que perseguimos sem cessar. Ora, essa palavra foi pronunciada, e por aquele que dentre todos os homens possuiu a inteligência mais desembaraçada, talvez, de qualquer entrave material. “Não é a função de um corpo bonito, dizia Platão, não é sua utilidade que nos demonstra que ele é belo? E tudo que achamos bonito, os rostos, as cores, os sons, os ofícios, tudo isso não é tanto mais belo quanto mais útil o sentimos?”

Que nosso idealismo se tranqüilize! É somente por uma longa acumulação de emoções e de vontades que o homem chega a reconhecer em seu caminho as formas que lhe são úteis. É essa única escolha, operada por alguns espíritos, que determinará para o futuro, no instinto das multidões, o que está destinado a passar do domínio da especulação para o domínio da prática. É nosso desenvolvimento geral, é a depuração penosa e progressiva de nossa inteligência e do nosso desejo que criam e tornam necessárias as formas de civilização que se traduzem, para os espíritos positivos, na satisfação direta e fácil de todas as suas necessidades materiais. O que há de mais útil para o homem é a idéia.

A forma bela, seja uma árvore ou um rio, os seios de uma mulher ou seus flancos, as costas ou os braços de um homem ou o crânio de um deus; a forma bela é a forma que se adapta a sua função. A idéia não tem outro papel que não o de defini-la. A idéia é o aspecto superior e a extensão infinita no mundo, bem como o futuro, do mais imperioso de nossos instintos, que ela resume e denuncia como a flor e a fruta resumem a planta, a prolongam e a perpetuam.

Todo ser, mesmo o mais baixo, encerra em si, ao menos uma vez em sua aventura terrestre, quando ama, toda a poesia do mundo. E o que chamamos de artista é aquele dentre os seres que mantém, em face da vida universal, o estado de amor no seu coração. A formidável voz obscura que revela ao homem e à mulher a beleza da mulher e do homem e que os impele a uma escolha decisiva a fim de eternizar e de aperfeiçoar sua espécie não pára de ressoar nele, dilatada e multiplicada por todas as vozes e murmúrios e rumores e espasmos que a acompanham. Essa voz ele sempre escuta, a cada vez que as ervas se remexem, a cada vez que uma forma violenta ou graciosa afirma a vida em seu caminho, a cada vez que ele segue das raízes às folhas a ascensão dos sucos subterrâneos no tronco e nos galhos das árvores, a cada vez que ele olha o mar se elevar e se abaixar como se para responder à maré dos milhões de germes que movimenta, a cada vez que a força de fecundação do calor ou da chuva o inunda, a cada vez que os ventos geradores lhe repetem que os hinos humanos se fazem com os apelos de volúpia e de esperança de que o mundo está repleto. Ele procura as formas que pressente como as procura o homem, o animal acometido do amor. Seu desejo vai de uma à outra, ele estabelece entre elas comparações impiedosas das quais irrompe, um dia, a forma superior, a idéia cuja lembrança pesará em seu coração até que lhe haja comunicado sua vida. Ele sofre até a morte, porque cada vez que fecunda uma forma, dá impulso a uma idéia, a imagem de outra nasce nele para torturá-lo; e porque sua esperança nunca demovida de alcançar o que deseja somente pode nascer do desespero de não o haver alcançado. Ele sofre, sua inquietação tirânica com freqüência faz sofrer os que vivem ao seu redor. Mas ele consola, em torno de si e cinqüenta séculos depois, milhões de homens. As imagens que deixará assegurarão aos que souberem compreendê-las a lógica e a certeza de um acréscimo de poder. Eles provarão, ao escutá-lo, a ilusão que ele provou um minuto, a ilusão muitas vezes temível mas sempre enobrecedora da adaptação absoluta.

É a única ilusão divina! Chamamos de Deus a forma que melhor traduz nosso desejo, sensual, moral, individual, social, que importa!,  nosso desejo infinito de compreender, de utilizar a vida, de fazer recuar sem parar os limites da inteligência e do coração. Com esse desejo invadimos as linhas, as saliências, os volumes que nos denunciam essa forma, e é no seu encontro com as potências profundas que circulam dentro dela que o Deus se revela a nós. Do choque do espírito que a anima com o espírito que nos anima jorra a vida. Só saberemos utilizá-la se toda ela corresponder aos movimentos obscuros que ditam nossa própria ação. Quando Rodin vê vibrar na espessura do mármore um homem e uma mulher atados pelas mãos e pelos pés, por mais apertado que seja o abraço, jamais compreenderíamos sua trágica sofreguidão se não sentíssemos que uma força interior, o desejo, confunde os corações e as carnes dos corpos soldados. Quando Carrière arranca da matéria universal uma mãe amamentando seu filho, não entenderíamos o valor de tal enlace se não sentíssemos que uma força interior, o amor, comanda a inclinação do torso e a curva dos braços maternais, e que uma outra força interior, a fome, aperta a barriga da criança. A imagem que nada exprime não é bela, e o mais belo sentimento nos escapa se não determina diretamente a imagem que o traduzirá. Os frontões, os afrescos, as epopéias, as sinfonias, as mais elevadas arquiteturas, toda a liberdade contagiante, a glória e o irresistível poder do templo infinito e vivo que erguemos para nós mesmos estão nesse misterioso acordo.

Em todo caso, ele define todas as formas superiores dos testemunhos de confiança e de fé que deixamos ao longo de nossa comprida estrada, todo nosso esforço idealista que nenhum finalismo – no sentido “radical”[2] que dão a essa palavra os filósofos – direcionou. Nosso idealismo é tão-somente a realidade do nosso espírito. A necessidade de adaptação o cria, o mantém em nós para fazê-lo crescer e transmiti-lo a nossos filhos. Ele existe em potencial, no fundo de nossa vida moral original, como o homem físico está contido no longínquo protozoário. Nossa busca do absoluto é o desejo incansável do repouso que nos daria o triunfo definitivo sobre o conjunto das forças cegas que se opõem ao nosso progresso. Mas, para nosso bem, à medida que avançamos, o fim se afasta. A finalidade da vida é viver, e é para a vida sempre móvel e sempre renovada que nosso ideal nos conduz.

Quando se segue a marcha do tempo, quando se passa de um povo a outro, esse ideal parece mudar. Mas o que muda, no fundo, são as necessidades desse tempo, são as necessidades desses povos que só o futuro pode demonstrar, através das variações de aparência, da identidade de natureza e do caráter de utilidade. Mal saídos do mundo egípcio-helênico, vemos estender-se em superfície o reino do espírito. Os templos hindus e as catedrais detonam suas fronteiras; os estropiados espanhóis e os pobres da Holanda o invadem sem nele introduzir sequer um desses tipos de humanidade geral pelos quais os primeiros artistas haviam definido nossas necessidades. Que importa. O grande sonho humano é capaz de reconhecer, mesmo aí, o esforço de adaptação que sempre o guiou. Outras condições de vida apareceram, formas de arte diferentes nos fizeram sentir a necessidade de compreendê-las para orientar nossa ação no sentido do nosso interesse. A paisagem real, a vida popular e a vida burguesa vêm caracterizar poderosamente os aspectos quotidianos nos quais nossa alma, esgotada de sonho, pode se recolher e se recompor. O próprio apelo da miséria e do desespero se faz para exaltar nosso desejo de nos reunirmos, nos reconhecermos e nos tornarmos mais fortes.

Se sucessivamente nos voltamos para os egípcios, para os assírios, para os gregos, para os hindus, para os franceses da Idade Média, para os italianos, para os holandeses, é porque pertencemos ora a um meio, ora a uma época, ora a um minuto que seja de nosso tempo ou de nossa vida que tem mais necessidade desses ou daqueles. Quando sentimos frio, procuramos o sol, procuramos a sombra quando temos calor. As grandes civilizações que nos formaram têm, cada uma delas, igual fração do nosso reconhecimento, porque pedimos sucessivamente a cada uma delas o que nos fazia falta. Vivemos a tradição quando tínhamos interesse em vivê-la, aceitamos a revolução quando ela nos salvaria. Fomos idealistas quando o mundo se rendia ao abatimento ou pressentia novos destinos, realistas quando ele parecia haver encontrado sua estabilidade provisória. Não exigimos mais comedimento das raças mais passionais, nem mais afã das raças positivas, porque compreendemos a necessidade da paixão e a necessidade do espírito positivo. Fomos nós que escrevemos o livro imenso em que Cervantes contou como éramos generosos e como éramos práticos. Seguimos uma após a outra as correntes do pensamento e conseguimos invocar argumentos de quase igual valor para justificar nossos pendores. O que chamamos de arte idealista, o que chamamos de arte realista são formas momentâneas de nossa eterna ação. Cabe a nós apreender o minuto imortal em que as forças conservadoras e as forças revolucionárias da vida se casarão para realizar o equilíbrio da alma humana.

Assim, sob qualquer forma que nos sejam oferecidos, sejam realmente verdadeiros ou verdadeiros em nosso desejo, sejam verdadeiros em sua aparência imediata e em seus destinos possíveis, o objeto em si mesmo ou o fato em si mesmo não são nada. Eles têm valor por suas relações infinitamente numerosas com um ambiente infinitamente complexo e nunca parecido com outro, que traduzem os sentimentos universais com infinita simplicidade. Cada fragmento da obra, porque ele próprio adaptado a seu fim, por humilde que seja esse fim, deve ressoar em ecos silenciosos por toda sua profundidade e toda sua extensão. Suas tendências sentimentais, no fundo, são de ordem secundária: “A bela pintura, dizia Michelangelo, é piedosa por si mesma, pois a alma se eleva pelo esforço que lhe é preciso aplicar para atingir a perfeição e se confundir com Deus; a bela pintura é um reflexo dessa perfeição divina, uma sombra do pincel de Deus...!” Idealista ou realista, atual ou geral, que a obra viva, e para viver, que a obra seja una antes de tudo! A obra que não é una morre como os seres mal-nascidos que a espécie, evoluindo em direção a seus destinos superiores, deve eliminar pouco a pouco. A obra una, ao contrário, vive no menor de seus fragmentos. Um torso de estátua antiga, um , um braço, ainda que meio roído pela umidade subterrânea, vibra e parece morno ao tato, como se as forças vitais ainda o modelassem por dentro. O pedaço desenterrado é vivo. Ele sangra como uma ferida. Acima do escoadouro dos séculos, o espírito redescobre sua ligação com os destroços pulverizados, anima o organismo inteiro com uma existência imaginária, mas presente em nossa emoção. É o testemunho magnífico da importância humana da arte, gravando os esforços da nossa inteligência nas fundações da terra, como as ossadas ali deixam o rastro da ascensão de nossos órgãos materiais. Realizar a unidade no espírito e transportá-la para a obra é obedecer à necessidade de ordem geral e durável que nosso universo impõe e que o sábio exprime pela lei da continuidade, o artista pela lei da harmonia, o justo pela lei da solidariedade.

Esses três instrumentos essenciais de nossa adaptação humana − a ciência que define as relações do homem com o fato, a arte que sugere as relações do fato com o homem e a moral que investiga as relações do homem com o homem − estabelecem para nosso uso, de uma ponta do mundo espiritual à outra, um sistema de relações cujas permanência e utilidade nos demonstrarão a lógica. Eles ensinam o que nos é útil, o que nos causa dano. O resto pouco nos importa. Nãoerro, nem verdade, nem feiúra, nem beleza, nem mal, nem bem fora do uso humano que deles queremos fazer. A missão de nossa sensibilidade, de nossa inteligência pessoal, é estabelecer o valor de tais coisas investigando de uma à outra as passagens misteriosas que nos permitirão abraçar a continuidade de nosso empreendimento a fim de tudo compreender e tudo aceitar dele. Será a melhor maneira de utilizar pouco a pouco o que chamamos de erro, feiúra e mal em vista de uma educação mais alta, e de realizar em nós a harmonia para expandi-la ao redor.

A harmonia é uma lei de ordem profunda que remonta à unidade primeira e cujo desejo nos é imposto pela mais geral e mais imperiosa de todas as realidades. As formas que vemos somente vivem pelas transições que as unem e pelas quais o espírito humano pode retornar à fonte comum, da mesma maneira que é capaz de seguir a corrente nutritiva das seivas partindo das flores e folhas para remontar às raízes. Veja uma paisagem se estender até a curvatura do horizonte. Uma planície coberta de ervas, de grupos de árvores, um rio que corre para o mar, estradas ladeadas por casas, cidades, animais errantes, homens, um céu cheio de luz ou de nuvens. Os homens se nutrem dos frutos das árvores, da carne, do leite dos animais que o vestem com seus pêlos e peles. Os animais vivem das ervas, das folhas, e se as ervas e as folhas crescem é porque o céu toma do mar e dos rios a água que derrama sobre eles. Nem nascimento, nem morte, a vida permanente e confusa. Todos os aspectos da matéria se interpenetram, a energia geral flui e reflui, floresce a todo instante para murchar e reflorescer em metamorfoses sem fim, a sinfonia das cores e a sinfonia dos murmúrios não são muito mais do que o perfume da sinfonia interior feita da circulação das forças na continuidade das formas. O artista vem, apreende a lei universal e nosum mundo completo cujos elementos caracterizados por suas relações principais participam todos da consecução harmoniosa do conjunto de suas funções.

Spencer viu os astros nus se desprender da nebulosa, solidificar-se pouco a pouco, a água se condensar em sua superfície, a vida elementar surgir da água, diversificar suas aparências, fazer crescer todos os dias seus galhos, seus ramos, seus frutos e, como uma flor esférica se abre para lançar sua poeira no espaço, o coração do mundo se expandir em suas múltiplas formas. Mas parece que um desejo obscuro de voltar às suas origens governa o universo. Os planetas, saídos do sol, não conseguem se afastar do círculo de sua força, como se nele quisessem mergulhar outra vez. O átomo solicita o átomo, e todos os organismos vivos, surgidos de uma mesma célula, buscam organismos vivos para refazer essa célula naufragando uns nos outros... como o justo quando se contenta em viver, como o sábio e como o artista, quando penetram lado a lado no mundo das formas e dos sentimentos, fazem sua consciência remontar à rota que ele percorreu para passar de sua antiga homogeneidade à sua diversidade atual e, num empenho heróico, recriam a unidade primitiva.

Que o artista se orgulhe então de sua vida iluminada e dolorosa! Dentre os arautos da esperança, ele tem o papel mais elevado. Ele pode, em todo caso, conquistá-lo. A ação científica e a ação social trazem em si uma significação suficientemente definida para se bastarem. A arte toca a ciência pelo mundo formal que é o elemento de sua obra, adentra o plano social dirigindo-se a nossa faculdade de amar. Há grandes cientistas incapazes de comover, e grandes homens de bem incapazes de raciocinar. Nãoherói da arte que não seja também, pela áspera e longa conquista de seu modo de expressão, um herói do conhecimento, um herói humano no coração. Quando ele sente viver em si a terra e o espaço, e tudo que se move, e tudo que vive, e até mesmo o que parece morto, até o tecido das pedras, como não sentiria também as emoções, as paixões, os sofrimentos daqueles que são feito ele? Saiba ele ou não, queira ele ou não, sua obra é solidária da obra dos artistas de ontem e dos artistas de amanhã, ela revela aos homens de hoje a solidariedade do seu esforço. Toda a ação do tempo, toda a ação das extensões culminam em sua ação. Cabe a ele sagrar o acordo entre o pensamento de Jesus, o pensamento de Newton e o pensamento de Lamarck. Por isso é necessário que Phidias e Rembrandt se reconheçam e que nós nos reconheçamos neles. 



[1] O que é a arte?
[2] Bergson. A Evolução Criadora.

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