Não é raro passar por três, cinco ou dez livros ou álbuns de BD sem experimentar nada de muito especial, ainda que todos sejam obras interessantes em bem executadas. E acontece de, nesses períodos sem descobertas, duvidar de que a "mágica" vá acontecer de novo. O ciclo de tentativa, erro, dúvida, perseverança e prêmio é, aliás, um padrão que se observa em muitas empresas da vida.
Vinha de uma dessas sequências de leituras não muito inspiradoras quando resolvi abrir Prends soin de toi, um romance gráfico de autor único que começa quando Achille, após acordar de um pesadelo pavoroso e tomar um comprimido, conclui a compra de um pequeno apartamento financiado em Paris. Planeja reformá-lo sozinho nos fins de semana e nas férias iminentes, até poder se mudar. Entre demolições, raspagens de piso e arrancamentos de papéis de parede, porém, vemos que Achille está incomodado por mais do que sonhos intranquilos.
Entre o cuidado com um grampo de cabelo da antiga proprietária, encontrado por acaso, e os pensamentos impertinentes que assaltam sua cabeça enquanto as mãos estão ocupadas com a marreta ou a espátula, faz-se evidente que Achille está atormentado pelo fim de um romance. Quando encontra, entalada debaixo do carpete velho, junto da soleira da porta, uma carta fechada da década de 70, percebe que não vai conseguir terminar de se mudar se não for tentar devolvê-la ao remetente, que mora em Marselha.
Ao partir com material de acampamento numa Vespa, estimando uma semana para chegar ao Mediterrâneo (uma trajetória que lembra o divertidíssimo Os autonautas da cosmopista, de Cortázar), o protagonista inicia de fato uma clássica viagem de superação, a pretexto de devolver a carta apaixonada que Mme. Cardin nunca leu.
É enquanto Achille vagueia pela imensidão do interior do país que o livro alcança seus momentos de maior lirismo e inspiração. E daqui se extrai outro clichê, o de que o caminho ou a pergunta são mais importantes do que o destino ou a resposta. Logo que deixa a cidade onde vive, ele sente o alívio de não procurá-la pelos lugares que frequentavam, afastar-se fisicamente das recordações mais óbvias. Repassa então um caleidoscópio de fragmentos de memória que parecem ser arrancadas pelo atrito com o vento. Até que, completamente sozinho pela estrada, sente-se finalmente livre.
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| "Tudo é maior que eu, tudo é maior que você. Somos todos pequenos e é muito bom." |
É enquanto Achille vagueia pela imensidão do interior do país que o livro alcança seus momentos de maior lirismo e inspiração. E daqui se extrai outro clichê, o de que o caminho ou a pergunta são mais importantes do que o destino ou a resposta. Logo que deixa a cidade onde vive, ele sente o alívio de não procurá-la pelos lugares que frequentavam, afastar-se fisicamente das recordações mais óbvias. Repassa então um caleidoscópio de fragmentos de memória que parecem ser arrancadas pelo atrito com o vento. Até que, completamente sozinho pela estrada, sente-se finalmente livre.
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| "Esqueço-as pouco a pouco... Escapo enfim!" |
Como quem percebe que é impossível fugir da própria sombra, porém, Achille, algumas curvas depois, cai de novo em alguma uma armadilha da memória, e o progresso de quilômetros e quilômetros é perdido de uma vez.
O fenômeno se repete ao longo do álbum, em que o protagonista alterna momentos em que celebra o poder da estrada e das paisagens de afastá-lo de suas elucubrações e recaídas, provocadas por algum pesadelo, pela última foto no telefone, que ele não conseguiu apagar, ou por uma espiada num perfil do Facepoop. O vaivém do processo de se desligar de alguém relevante me lembra a ciência dos foguetes: é preciso impulso suficiente para alcançar um ponto específico do espaço em que a gravidade cede e o objeto subitamente poderá flutuar, solto e leve. Um metro a menos, porém, e toda a energia terá sido desperdiçada, o projétil se esborrachará como qualquer maçã. Em Austronauta: Magnetar, aliás, a imagem é quase literal - em um pequeno asteroide, um pouco de sebo nas canelas pode ser suficiente para atingir velocidade de escape.
O volume de texto modesto em relação ao grafismo inspirado e épico do livro delineia a dimensão do tempo, longo e arrastado para quem foge de um rompimento doído, e também mais lento quando se sai da cidade e se exploram novas paragens, sem roteiro. Longas observações de minúcias do cotidiano, detalhes de fauna, flora, natureza e de arquitetura, adoráveis cidadezinhas despovoadas da França culminam numa profunda digressão sobre o tempo, do tipo que só os desapaixonados conseguem tecer. Além de excelente estilista e observador, o autor põe seu traço a serviço da narrativa, fluida, clara e desapressada.
E Achille segue adiante, não por uma resolução parecida com a do seu herói homônimo, mas porque não tem alternativa. Quem tenta fugir de si sabe que é um pouco louco, mas menos do que se tornaria se remoesse parado seus traumas. Vai ver é justamente a maladie d'amour que fez tantos artistas serem viajantes inquietos: sem elas teriam talvez permanecido contentes em seus cantos, como leitõezinhos bem cevados, e visto muito menos do mundo.
Lembro-me de, com 24 anos, experimentar uma epifania quando, tendo que me preocupar apenas com minha bolsa e o pouco de dinheiro que tinha reservado para vagar pelo Cone Sul, ocorreu-me que a vida dificilmente seria melhor do que aquilo. Que dificilmente voltaria a me sentir tão confortável, distante de neuroses urbanas e idiossincrasias maníacas. Divido-me hoje entre certo orgulho da minha presciência juvenil e a tristeza da confirmação. À sombra disso é que talvez eu enxergue um lirismo ainda mais possante nessa passagem do livro, em que o viajante experimenta uma consciência aguda da leveza de seu presente e da frugalidade de seus pertences:
| "Na estrada, eu me sinto leve. (...) Só tenho minha mochila e minha Vespa." |
Mais recentes e melancólicas porém foram as evocações de Marselha, seu porto, seu forte, a Nossa Senhora da Guarda, o vento Mistral, becos medievais e os formidáveis calanques. Enquanto para Achille aquele era o ponto de chegada, a culminação de seu processo de elaboração e o cenário de sua tentativa de exorcismo simbólico, para mim a velha cidade estava bem no meio do mosaico de recordações que se recusavam a desbotar.
Encerrando o álbum com o mesmo tom fluido do início, o final da jornada de Achille consagra, nas palavras do velho autor da carta e na perseverança do protagonista, mais um lugar-comum de sabedoria à prova de corrosão, até mesmo pela salmoura do Mediterrâneo: assim como a água é o solvente universal dos elementos, o tempo acaba por diluir qualquer aflição.
Autor (texto, desenho e cores): Grégory Mardon
Editora Futuropolis (2017)
Preço de capa: €22



