Osman Lins é um dos grandes artistas desconhecidos do Brasil. É de se lamentar, embora seja explicável, que o autor de Avalovara (jamais editado digitalmente) seja tão pouco lido.
Em "Guerra sem testemunhas: o escritor, sua condição e a realidade social", de 1974, fala, como poucos no país, sobre a condição de escritor em sua interface com as pressões da vida material, sobretudo o dinheiro e o trabalho não vocacionado.
Guerra sem testemunhas não é reeditado há décadas e tornou-se uma raridade de sebos. Em espírito de utilidade (quase) pública, transcrevo aqui alguns trechos que guardei de uma aparente 2ª tiragem da Ática, de 74.
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CAPÍTULO I (O Ato de
Escrever)
Há quantos dias, já escritos de
modo provisório trechos intermédios deste livro ao fim do qual espero estar
mais lúcido, menos entregue às múltiplas correntes externas e às inclinações
interiores que com tanta freqüência nos governam a todos, há quantas semanas,
opresso ante problemas obscuros, cálculos inúteis, soluções obtidas e logo
recusadas, venho sentar-me a esta mesa, de onde me levanto – perplexo e
intranqüilo – sem haver acrescido ao trabalho uma só frase?
Hoje, porém, se ainda estou
incerto quanto ao processo a seguir em minha exposição – ou em minha procura?
–, ocorre-me de súbito o ardil de confessar esta inatividade e referir ao mesmo
tempo os fins da obra projetada. O que era obstáculo transforma-se em pretexto
para agir; converte-se em literatura o que me impedia de escrever. Deste modo,
sem o fazer deliberadamente, ilustro o postulado gideano segundo o qual o
escritor, longe de evitar ou ignorar suas dificuldades, nelas deve apoiar-se.
(...)
Em regra, sabe-se pouco sobre as
relações de um escritor com o livro a ser executado, ajuizando-se mal os
esforços por ele despendidos na tarefa. Enquanto os ilusionistas, em nada
colaborando para clarificar o problema, e afetando ligar-se a vagas esferas
superiores, reforçam o mito de serem conduzidos por um mentor invisível, tão
condescendente quanto sábio, a maioria das pessoas crê – crença, aliás, que em
última análise não chega a se opor ao mito, pois ambas as versões resultam no
conceito de escrever como função mecânica – que o seu trabalho se reduz a
lançar no papel um texto impresso no espírito; ou, em casos mais complexos, a
promover a ordenação escrita de conhecimentos adquiridos em suas relações com a
vida ou através de leituras. A prévia convivência do autor com a matéria que,
devidamente ordenada, virá a constituir um livro, distingue realmente certa
espécie de escritos, aqui chamados cursivos
e entre os quais figuram muitas obras cujo desaparecimento seria lastimável.
Evite-se, porém, ao considerá-las (embora registre a história da literatura
casos excepcionais como o de Milton, que ditava a um secretário estrofes
inteiras do Paraíso Perdido),
qualquer idéia de facilidade ou de simples transcrição.
(...)
Quando eu dizia ter a esperança
de ao fim do livro “estar mais lúcido, menos entregue às múltiplas correntes
que com tanta freqüência nos governam a todos”, delineava-se, às primeiras
palavras, sua verdadeira natureza. Devo sublinhar que o estudo, certo sentido
de orientação e razoável domínio da linguagem podem facultar ótimas obras
cursivas; mas só um escritor, para quem as relações com a escrita chegam a um
grau de intensidade que as outras pessoas desconhecem, é capaz de envolver-se
no processo enervante – para ele não isento de atrativos – de perseguir,
apreender e disciplinar, ao jugo da palavra exata, realidades esquivas. Só o
escritor dispõe de meios para levar a cabo um texto de bordejo. Donde a
categórica afirmativa de Simone de Beauvoir: “Toda obra literária
essencialmente é uma procura. (...) Romance, autobiografia, ensaio, não existe
obra literária válida que não seja essa procura”.[1]
(...)
Se este escrito, como toda e
qualquer obra literária, tem razão de ser em nossa época, é problema inserido
naquela ordem de assuntos exteriores
que o estudo em curso pretende alcançar; e que talvez venham a ser, de todos,
os mais importantes para mim. Voltando para eles meu exame, jogo sobre a mesa,
o que pode ser-me decisivo, aquilo para o que tenho feito verter a minha vida,
o ato de escrever. Ato que sempre enfrentei, desde os anos mais verdes, com um
certo sentido festivo e ao mesmo tempo com gravidade, como se alguém que me
houvesse incumbido de aperfeiçoá-lo, e a quem eu devesse obediência, a cada
instante estivesse para surgir e pedir-me contas do trabalho. Aqueles assuntos
– entre os quais também surgem o comportamento do leitor e a indiferença que,
marcadamente no Brasil, cerca os escritores – atraem-me, sobre eles me
interrogo há muito; mas aproximadas, será possível, quem sabe, desvendá-los; de
qualquer modo, tornar-se-ão para mim bem menos obscuros. Não é impossível,
através desse exame, chegar à conclusão de que – havendo renunciado a obter,
através de atividades outras, um lugar no mundo, um modo de viver mais trivial
e cômodo, aceitando pelo contrário um estado de luta e de tensão permanentes,
sem o qual jamais escreveria uma só página que merecesse leitura – escolhi
trabalho tão arcaico como o de iluminista ou como o símile do navio com as
velas abertas em plena calmaria.
(...)
CAPÍTULO II (O
Escritor)
Vive o homem, como um personagem
alegórico, entre a Ambição e o Medo. Teme ofender aos poderosos, de
quem depende e que podem, com sua cólera, ou apenas com seu desinteresse,
dificultar-lhe a existência; ambiciona possuir riquezas, único bem indiscutível
e reconhecido por todos o temor desnatura o que em si há de virgem, fazendo com
que os seus atos deixem de exprimir impulsos e convicções; o protesto
converte-se em blandícia, as afirmativas são sempre cautelosas e tudo que diz
tem seu endereço: palavras doces para os amantes do mel, amargas para os que
preferem o vinagre e o fel. Atrela-o a ambição ao que detesta. Aos poucos
abandona o que pode liberá-lo, conquista bens que o sufocam. Muitos,
acreditando comprar a liberdade de espírito, ou afetando ser este o seu
objetivo, empenham a juventude, a maturidade, na obtenção do que se costuma
chamar uma situação estável, para entregarem-se – depois, mais tarde, um dia –
sem cuidados, a ocupações realmente humanas. Assemelham-se a um barco, longo
tempo ancorado, muitos anos, à espera dos tripulantes para fazer-se ao mar. Os
tripulantes e o dono só virão quando não mais tiverem cuidado algum em terra,
de modo a poderem improvisar suas rotas, partir tranqüilos, viajar sem
quaisquer apreensões. Mas o barco está morto, apodreceu, não irá jamais a parte
alguma. Se as letras nos parecem vivas, como ao homem que empreende este
escrito, e se aspiramos, como lhe sucedeu, à sua convivência, temos de aprender
a ignorar, bem cedo, no verdor da juventude, a ambição de fortuna e o receio de
ferir aos ouvidos sensíveis com as dissonâncias de nossa voz. Alheios ao êxito
em qualquer outra esfera, acionaremos pouco a pouco as nossas virtualidades,
cada vez mais amestradas, empenhando-as numa obra que, sem renegar as heranças
recebidas, também não decalque nenhum de seus modelos, opondo-se a todos, assim
como haveremos de opor, a tudo que nos cerca, a impertinência do nosso próprio
ser. Recearemos, apenas, o arrefecimento de nossa decisão ante as forças que,
na juventude, mal adivinhamos – e que, como nas fábulas de provação, onde o
viajante é solicitado por acontecimentos e aparições que confluem para
desviá-lo, virão uma após outra.
A determinação moral, mesmo
sustentada por uma disposição intelectual favorável ao esforço criador,
constitui uma preliminar. Poucas, sabe-se, as possibilidades de alcançarmos,
neste ofício, a recompensa de um livro duradouro. Por mais que cerremos o
espírito aos desvios, destinam-se os escritos literários, em grande maioria, a
existência curta: 80% desaparecem em um ano, 99% em vinte anos. Um massacre
onde poucos sobrevivem. Bem menos improvável o êxito no funcionalismo, nas
armas, no comércio, desvantagem acentuada em nossos dias pelas negações que
incidem sobre a validade da literatura. Não falta, mesmo assim, sentido àquele
risco, por menos perduráveis que sejam as nossas páginas. Conhecem os
escritores, nesse lance onde jogam toda a sua vida, uma alegria sem
interrupção, que em momento algum e mesmo despojados, aflitos, coléricos – os
abandona, desde que possam escrever.
(...)
Habituamo-nos a associar os
escritores, bons ou maus, quando não vivem exclusivamente de seus livros, ao
magistério, ao jornalismo ou à burocracia. Estes gêneros de atividades, à
primeira vista, correspondem às aptidões básicas e mesmo aos hábitos do
intelectual. Entrelaça-se, o seu exercício, com o estudo, a pregação, a
cultura, a escrita. Oferecem, porém, vários inconvenientes. O primeiro é o de
ligar o escritor, com maior ou menor dependência, a uma instituição, ameaçando
a liberdade em que deve ser engendrada e cumprida a sua obra. Receio, no caso
especial do ficcionista, que o mundo da burocracia, com a sua inapelável
estreiteza, não seja o mais propício à sua experiência e o mais estimulante à
sua imaginação. Muitas energias despende um homem para manter-se desperto e
resguardar, em seu íntimo, a memória do universo, no convívio permanente com
funcionários e com a atmosfera mesma das repartições.
(...)
Urge, por outro lado, criar em
seu espírito um núcleo invulnerável, onde a obra haverá de prosseguir, dia a
dia, alheia a quaisquer vicissitudes. Como escrever e dar por concluído um
livro, à mercê de acontecimentos externos e até de modificações interiores? Que
destino seria o de uma obra empreendida em anos de alegria e concluída em
tempos infelizes? O livro, conquanto não alheio à realidade circundante, que de
algum modo o exigiu em sua origem, constitui um ato singular na rotina diária
do escritor, subterrâneo curso atravessando nascimentos, mortes, dívidas,
desastres, mudanças políticas, triunfos, crises morais, desemprego, doenças, cataclismos.
Tudo isto, por certo, atingirá o autor, inoculando-se na obra: nada, se ele
franqueou determinado estágio perante o mundo e a palavra, virá desviar ou
perturbar sua concepção. Naquele núcleo, a criação prossegue, atravessando os
dias claros e os sombrios, do mesmo modo concentrado e tenso com que uma ave de
rapina vara claridade e sombra rumo à presa. A paciência, pela qual André Gide
confessava apreço, necessariamente será desenvolvida. “É uma virtude grande e
rara a paciência, saber esperar e amadurecer, corrigir-se, voltar a começar e,
como dizia o Apóstolo, tender à perfeição.”[2]
Ante o papel (buscar tranqüilamente a frase,
experimentar algumas de suas muitas possibilidades, aguardar o instante em que
orações e períodos se encadeiem, trabalhar sobre eles); perante a vida (saber
que esforço algum pode substituir o tempo em nosso processo de maturação e que
nossos progressos se efetuam em segredo); esperar sem ânsia o instante em que
alguém publicará afinal um livro seu (evitar o perigo de antecipar-se a essa
primeira triagem que é a aprovação de um editor e custear seus escritos
juvenis, arriscando – o que é injusto – bens materiais, ao mesmo tempo que seu
nome, sua reputação e talvez seu destino como homem); não inquietar-se mais
tarde ante a reduzida venda de seu livro, o silêncio da crítica ou a
indiferença dos leitores (lembrando-se de que essas conquistas não cabem só ao
livro, fazendo parte da vida do escritor, compreendê-las com calma e
obstinação, refletir que o malogro de um trabalho levado a termo com dignidade
vale mais que cem êxitos obtidos mediante capitulações e que pelo menos a
vitória de haver resistido a todo gênero de prostituição intelectual fica
reservado aos que, fechados numa espécie de ira, lançam-se para a frente, fiéis
àquela obra que, em seu íntimo, sabem dever cumprir – e partir para outro
livro, parcela dessa obra total, onde abrangerá espaços que o anterior não
alcançou).
Invadindo, com a sua presença, o
espaço do texto – o que possivelmente sucederá outras vezes – confessa o autor,
aos que o desconhecem, não haver correspondido, dentre as sugestões apontadas,
quase todas nascidas ao tempo de seus primeiros ensaios literários, a que se
refere a ofícios manuais. Enveredou, justamente, pela burocracia, sacrificando
desde cedo nesse emprego estável 40% das horas disponíveis, se excluídas as
indispensáveis ao sono. Tributo bastante alto, para realizar sua obra com o
máximo de liberdade interior, sem preocupar-se com a reação imediata do público
e sem alienar, em tarefas ainda mais contíguas às letras, sua experiência,
imaginação e o que pôde obter com o natural esforço – no convívio com a literatura.
Jamais conseguiu ajustar-se ao trabalho, tão árido quanto uma salina, mas que
oferece um saldo de horas livres e pouco exige da mente quando, como ele,
negamo-nos a progredir. A vida está cheia de transações dessa espécie.
Preserva-se o braço decepando a mão. Assim, embora não resignado (pensa nos
milhões de homens para quem o tempo é vasto, a comida pouca, a morada exígua, a
esperança parca, o presente agro, o futuro nenhum), pode considerar-se, não
obstante a inexperiência que o induziu à opção, um filho da fortuna, um manco
venturoso, como o sargento que se dizia protegido dos deuses por ter perdido em
combate um braço e um olho, enquanto a maioria de seus companheiros tinha
perdido a vida, e seu comandante a honra e as dragonas. O tributo a que alude permite-lhe
a salvação parcial, de qualquer modo é um recurso para escapar ao massacre de
uma engrenagem avessa à livre fruição da vida e à plena expansão do que devemos
ser. Dedica, assim, boa parte do todo dia útil
em tarefas para si inúteis. Em vinte anos, segundo calcula, passou lidando com
fichas, memorandos, arquivos de madeira, cifras indicativas de fortunas alheias
e quase sempre iníquas, máquinas de calcular, formulários, carimbos e
protocolos borrados, máquinas de calcular, formulários, carimbos e protocolos
borrados, 28.800 horas, não computando fins de semana e épocas de férias.
Atribuindo-se ao dia dezesseis horas, descontadas portanto as oito de repouso,
passou, exatamente, em vinte anos, sessenta meses encerrado num Banco, sessenta
meses em que não escreveu, não aprendeu, não pôde locomover-se, nada colheu do
que o mundo oferece, não viveu. Esta a contribuição que lhe foi preciso
oferecer, para salvar – nesse jogo desigual – um pouco do que se acreditava à
altura de fazer: cinco anos, um quarto do tempo que lhe pertencia. Sucede, a
cada passo, velhos protocolos virem-lhe às mãos. Folheando-os, vê de súbito
documentos de vários anos antes, com as iniciais de seu nome e a rubrica já
meio apagada. Não pode deixar de ver, naqueles sinais, o reverso de alguma
coisa viva que podia fruir, ou podia criar – e não foi criada, nem fruída. Para
consolar-se, pensa no sargento caolho e manco.
(...) Inadmissíveis, em literatura,
planos modestos. Que sentido teria para mim jogar a minha vida num combate sem
termo com as palavras, que louco serei se não espero outra coisa que obras sem
fulgor ou de escasso brilho? Que homem sou também se me resguardo nessa
proteção e impeço que outros digam de mim jamais haver chegado ao que lutei por
ser, uma vez que eu mesmo, hábil, vim e antecipei-me a eles, testificando
conhecer minhas limitações e aventurar-me tão-só a medianos alcances?
Aflige-nos, repetidamente, a certeza de que a nossa visão do mundo é turva,
vulgar nossa prosa, sem novidade nossas invenções e nosso fôlego curto.
(...)
A atitude contrária, além de
revelar um precário sentido de realidade, impregnado aliás de ranço
aristocrático, e de certo desdém com relação a um público que, em boa parte, se
não atenta para a sua obra é por estar aplicado no estudo de outras que lhe
falam mais de perto ou mais profundamente, concorre para firmar a idéia,
bastante difundida entre nós, que conceitua o escritor como um fabricante de
expressões desusadas, manipulador de belas frases, inventor ocioso, agindo fora
da vida e não empenhado em sua atividade, a qual não representa para ele um
risco, uma aventura em que joga sua própria existência, e sim um passatempo
como as habilidades com o baralho. Este conceito é justificado pelos escritores
cuja conduta reflete displicência em relação ao destino de seus livros ; e que
chegam mesmo, em muitos casos, a repudiar o título de escritor, passando-o
adiante, como se tal condição os envergonhasse, significasse a prática de ações
inconfessáveis, ou – o que vem a dar no mesmo – fosse próprio de deuses, de
seres etéreos, nunca de homens, fundidos até as entranhas na viscosa, áspera,
contundente, banal e também misteriosa realidade em que está imersa a espécie
humana. Se não reagimos com franqueza ante os sucessos e vicissitudes que
assinalam a história de nossos livros, se damos a impressão de não estarmos a
eles vinculados, como exigir ou esperar do editor, do leitor, um interesse e um
zelo que somos o primeiro a recusar?
(...) A obra literária, esse
objeto frágil, tímido, fechado, não surgido sem pena, e sim às custas de um
longo, árduo, paciente esforço, da convocação integral de nosso ser, e por isso
mesmo capaz de revelar a quem a aborde em condições propícias, áreas que lhe
estariam para sempre vedadas, esquivas a qualquer outro gênero de experiência.
(...)
Impossível deter (são os
contágios, as correntes de ar da vida interior) os desfalecimentos. Mesmo a fé
dos santos, em determinadas circunstâncias, vacila. Como não vacilaríamos nós,
homens do século, bem mais envolvidos do que eles nas traições e equívocos do
mundo? Não faltam, pois, horas de desgosto e até de desespero para o escritor,
que se crê vitimado por um longo equívoco e vê em sua obra nada mais que um
envoltório oco, sobrecarta vazia endereçada a alguém que não existe, nunca
existiu, não haverá de nascer. Mas permitir que essa disposição inspire nossos
atos, comunique-se aos nossos escritos, é trazer para o exercício das letras o
mesmo enfado com que os burocratas – e, com eles, muitos profissionais –
encaram em nosso tempo os respectivos ofícios. Compreende-se que numa época
onde quase se perdeu – não para sempre, decerto – toda a liberdade de fazer, e
em conseqüência a alegria de fazer (como nos alegrarmos em tarefas nas quais
não estamos empenhados?), os homens considerem seus afazeres como penitências.
Escrever, ao contrário, é uma das bem raras atividades livres hoje concedidas
ao homem, uma das poucas em que lhe é viável projetar a sua unicidade, a sua
originalidade. Fala-se de Galileu como o exemplo do homem afligido pela
intolerância de seu tempo. Exageramos em afirmar ter sido o inquieto astrônomo
de Pisa, no seu íntimo, mais livre que a grande maioria dos atuais homens de
ciência, para quem não há excomunhões nem fogueiras? Atrelados a interesses de
que jamais participam, alugam seus cérebros e concentram-se em estudos que bem
podem havê-los atraído; mas a partir desse instante, têm de ignorar qualquer
apelo das coisas desconhecidas. As interrogações que deve responder não brotam
de seu íntimo, vêm do exterior; foram organizados grandes escritórios para
suprir de problemas seu espírito. Dramático é o testemunho de Einstein, ao
proclamar que o homem de ciência, em nossos dias, vê-se “obrigado, como se
fosse um soldado, a submeter-se ao silêncio imposto pelos detentores do poder
político, a sacrificar sua própria vida, e por vezes, o que é pior, destruir a
dos outros, ainda que esteja convencido do absurdo de tal sacrifício.”[3]
Parece menos grave, confrontada com esta, a situação de Galileu, saltando as
grades do jardim doméstico em que até então vivera e alçando-se por conta
própria no rumo das estrelas, de súbito transfiguradas, precipitando seus
contemporâneos no âmago de um universo novo, cuja insólita grandeza era quase
impossível encarar sem pavor. A ordem que o obrigou a retratar-se buscava
eliminar quaisquer perturbações em sua quietude, apelando com tenacidade cega
para recursos extremos, mas não corrompia o homem de ciência; aquela ordem se
opunha à aventura, castigava-a, mas não criava normas – e rígidas – para o seu
exercício. Seria falso afirmar que em nossa época também não esteja ameaçada a
integridade espiritual do escritor; em todas as sociedades, todos os valores estiveram
sempre ameaçados. Também não se deve asseverar que muitos não abdiquem da
liberdade inerente ao ofício de escrever e submetam-se a executar o que lhes é
imposto do exterior. Não faltam, em tempo algum, capitulações suicidas. A
rendição do escritor, contudo, não é imposta pela nossa época, como sucede ao
homem da ciência, cuja atividade, em tese desinteressada, veio a tornar-se, por
dispendiosa, quase um monopólio de nações opulentas, não raro adversas a seus
países de origem. Na simplicidade mesma dos instrumentos necessários à escrita,
que à primeira vista sugerem pobreza e inadequação ao nosso mundo complexo, de
soberbos e imensos capitais, residem nossa força, nossa liberdade e o júbilo de
nosso ofício. Essa pobreza – esse lápis, essas folhas de papel –, pobreza que
defende o escritor de mil influências deformadoras, em nome de nada e sob
pretexto algum devemos renegar. Não é de todo impossível o advento de alguma
época torva em que o papel, mesmo em branco, venha a ser, como no célebre
romance de George Orwell, “propriedade comprometedora”. Nem a prepotência
levada a esse termo impedirá que exista uma parede, uma porta, uma tábua, uma
lousa, sobre as quais tentará o escritor, silenciosamente, o exercício de sua
condição. Petrarca, em seus passeios, apreciava usar uma roupa de couro onde
fazia anotações. Pascal, com um estilete, escrevia nas unhas.
EXCERTOS DE OUTROS CAPÍTULOS
“Sem uma concepção de mundo que enseje planificar – com base
em princípios talvez não absolutamente claros – sua obra futura; sem uma justa
visão do fato literário; e sem ter com o mundo um comércio que o induza a
exercitar sua imaginação com o fito de representar, em termos romanescos, o
mundo visto por ele, por ele experimentado, depreende-se que o autor
embrionário se ponha nessa fase em uma posição de perplexidade e desgoverno
perante a obra a ser (talvez) escrita. A decisão de escrever, nestes casos, não
nasce de um desejo de sondar o mundo e interpretá-lo, de projetá-lo e ao mesmo
tempo perquiri-lo através de uma obra. É um impulso, um desafio. Coloca-se o
possível escritor, diante da obra, no mesmo grau de nebulosidade com que um
adolescente busca descortinar sua existência futura. Tal obra, ainda sem
ligação com outras planejadas ou escritas, solta, informe em sua origem e sem
finalidade precisa, pode muito bem não ser empreendida. Não prepara
conscientemente outros livros, não se coordena com obras anteriores. No
entanto, esta é a fase em que, à falta de razões mais objetivas, cremos obedecer
ao irresistível apelo de uma vocação; urge escrevermos. Convocamos nossas
forças, ignorando que elas mal existem. Um livro nos chama, das trevas do
incriado.
Mas não há livro algum, nada nos chama. Inventamos o livro e
o apelo. Dissemos antes que a obra, antes de nos preocupar, viveu em nós uma
existência recôndita. Cremos que essa existência anterior, no autor imaturo, em
geral é bem curta. Pois a obra, nessa fase, não resulta de uma elaboração
conjunta de nossas faculdades: nossa imaginação, num assomo de orgulho,
inventou – antes de inventá-la – a precisão de escrevê-la. Quanto à obra mesma,
de que reflexos é tecida? Sem a rijeza e a coragem que só aos poucos – e nem
sempre – iremos alcançando, não será a nossa curta vida, a de nossos
familiares, nossos conflitos, a cidade ou o país onde habitamos, as estações
conhecidas, a estrutura política existente, nosso tempo, os eventos
contemporâneos, enfim a parte da vida em que roçamos, a matéria do livro
imaginado. Vamos concebê-lo como as pessoas alheias à realidade literatura
crêem ser concebidas as obras de ficção: prospecções no vazio, idealizações do
irreal. Mais facilmente projetaríamos na obra imaginada o personagem de algum
antigo folhetim, retocando-o, que o próprio Julien Sorel, se o houvéramos
conhecido. O futuro autor de Sagarana,
segundo testemunha um amigo de sua juventude, concentrava-se aos vinte anos ‘na
idéia de escrever contos motivados na vida dos camponeses ucranianos, russos,
caucasianos, chineses’. Guimarães Rosa esforçava-se por “penetrar na alma e na
vida da gente dos países distantes”.[4]
Não nos empolgam, nesse período, as paredes, árvores e cheiros da cidade ou
bairro onde habitamos, ainda que se chamem Saint‑Germain ou Córdova. Afetamos,
enquanto criadores, uma prosódia alterada por influência estrangeira. Voltamos
as costas ao imediato. Ou melhor, ao contrário de Jano, com seus dois rostos,
atentos ao que se passa no interior e fora dos recintos, temos duas nucas,
estamos voltados para dentro de nós mesmos. O mundo nos fere.
Claro que uma obra engendrada nestas condições não está
destinada a desenvolvimento harmonioso e, menos ainda, a feliz termo. Ligadas à
carência de fulcro e de identificação com as coisas, afetam-na duas grandes
falhas, uma relativa ao próprio esforço que a sua realização envolve e outra
aos materiais convocados para essa realização.
[...] No autor ainda verde, o compromisso de fazer com que o
livro progrida, desenvolva-se, é desesperador. Tão incertos buscamos nosso
rumo, que os vários trechos do trabalho se anulam mutuamente.” (Cap. IV, O
Escritor e a Obra, pp. 52-53)
“Estes, em suma, são os dois caminhos abertos à literatura,
segundo o grau de evolução do autor: fechar o espírito ao mundo sensível;
sorver com apetite o mundo sensível. Objetar-se-á que este é uma grosseira
aparência e que o verdadeiro escritor deve voltar-se para uma realidade mais
alta. Repetiremos que esse valor mais alto é invocado sempre pelos que recusam
o mundo e que assim se justificam. (...) Poderíamos mesmo afirmar, sem
intenções polêmicas, que o traço específico do ficcionista não é a capacidade
de organizar enredos, nem a de retratar personagens. Nem mesmo a de conceber
uma estrutura; e sim a capacidade de introduzir em sua obra o mundo sensível, a
realidade concreta, o osso do universo, de tal modo que as coisas incorporadas
à obra sustenham-na sem estorvarem, sem que nos apercebamos de sua presença
voraz e dominadora.” (Cap. IV, p. 57)
“Sucedem-se, no curso da obra, durante a vida inteira do
escritor, as fases de entusiasmo e desgosto. Afligimo-nos com a lentidão do
trabalho, desconfiamos dos momentos em que avança rápido, acreditamos trazer às
letras uma contribuição de valor e logo nos ensombra o pensamento de que
milhares de livros existem iguais ao nosso, usando as mesmas imagens, dizendo
as mesmas coisas. Deveremos parar? Refazer tudo? Iniciar outro livro?
Continuamos. Terminada a obra, não superamos essas incertezas, essas vacilações.
Mas há sempre um instante não destituído de solenidade e que não trocaríamos
por nenhuma outra riqueza: este em que chegamos ao fim de nosso livro, em que a
última página é escrita, em que podemos dizer a nós próprios, aos nossos
amigos, que a obra está composta, que triunfamos sobre o informe, levando a
termo o empreendimento a que meses antes, talvez anos, nos houvéramos lançado.”
(Cap. IV, p. 61)
“Com o passar do tempo, solicitada por esse vazio cujo rumor
aprendemos a escutar, uma das obras que, desde anos, medrava em nosso espírito,
desenvolvendo-se ao mesmo tempo em que a outra era composta, vem a definir-se,
e com ímpeto, agora que as nossas energias, novamente ociosas, nela se
concentram. Um dia, sentamo-nos à mesa e acariciamos, com gravidade, fé,
pertinácia e alegria, algumas folhas de papel em branco. Estamos novamente em
face do mundo, tensos, prontos a entregá-lo, a empreender, mais um combate a
nossa própria fragilidade. Surge a primeira fase indecisa, a primeira página,
novo ciclo tem começo, com o empenho global de nossas forças.” (Cap. IV, pp.
63-64)
“Que milagre multiplicará seus dias ou lhe devolverá o tempo
despendido na despendido na realização de um livro que não acha ressonância
alguma? Certo, a experiência, mesmo de um erro, pode ser proveitosa e
enriquecedora. Mas não se vive sempre
de experiências, chega o tempo em que se torna indispensável uma confirmação
exterior, sob pena de perdermos a noção de nossos rumos.” (Cap. V, O
Escritor e a Máquina Editorial, p. 75)
“Mesmo porque a solidão do escritor, em seu quarto fechado,
é aparente. Ele está, na verdade, ligado aos homens, sejam ou não seus
leitores, por vias bem mais fortes que a vizinhança material. Seu livro, se se
trata de um escritor no mais puro sentido do termo, não se dirige à multidão:
nascido de muitos, ou talvez de todos, é endereçado a cada um dos indivíduos
que compõem a multidão. Dirige-se à multidão desmembrada e capaz de escutá-lo,
não induzida por um entusiasmo coletivo e fortuito, mas lúcida, serena – em
estado de liberdade. Tal liberdade, para o leitor, só é possível graças às limitações da literatura; ao extremo
ascetismo de todos os seus meios. Estas limitações são a honra do escritor.” (Cap.
VII, O Escritor e o Livro, p. 146)
“Em nenhum lugar que não nos verdadeiros livros, esses
espaços misteriosos, limitados e ao mesmo tempo sem limites, feitos de presente
e de sempre, iremos encontrar, quando tudo nos atordoa, nos incita ao imediato
e nos precipita no rumor, o silencioso centro em torno do qual há de girar o
universo que somos – esta frágil armação –, salvando-nos assim do esfacelamento
interior.” (Cap. VII, pp. 148-149)
“O escritor penetra, para cumprir-se, em zonas
desconhecidas, nisto exaurindo-se – e um livro é algo que, antes de escrito,
não se revela. Escrevê-lo não é apenas um problema de tempo ou de organização:
constitui uma aventura à qual o escritor se lança, por assim dizer, numa
cegueira lúcida. Avançará, continuadas vezes, muitas páginas, para verificar
que se enganou e que é preciso voltar, recomeçar. Não repousa até que tudo se
elucide para ele e para o leitor imaginário ao qual destina o texto.” (Cap.
VIII, O Escritor e o Leitor, p. 153)
“Creio delineado o cenário não muito aprazível onde o
escritor, hoje, resistindo às pressões desfavoráveis e abdicando de todas as
solicitações que empolgam os contemporâneos, tenta exercer de maneira correta o
seu ofício. (Não falo aqui apenas dos ficcionistas. Aludo ao prosador, ao
poeta, em ambos os casos restringindo-me aos que, vinculados à palavra,
realmente assumem o papel que lhes cabe. O diletante, que apenas utiliza a
escrita e foge a empenhar-se, definindo-se como seu servidor, é omitido neste.)
Aparentando-se situar-se à margem, pois sabe-se que o consideram,
ordinariamente, um inepto, dando-se o paradoxo de sonâmbulos lamentarem o
desperto, por contemplar imóvel os adormecidos que se agitam, toma a si o
encargo de meditar e amestrar-se, durante a vida inteira, para criar num plano
oposto aos de hoje celebrados e identificado, pela maioria, com a defecção ou a
loucura. Espécie recalcitrante, amante de bens desprestigiados, prolifera
obstinadamente, quando tudo parece conjugar-se para fazê-la desaparecer.” (Cap.
X, O Escritor e a Sociedade, pp. 199-200)
“Nem sempre ouvem os homens a própria consciência; mas se
têm consciência, ainda não lhes sobreveio a morte interior. Por mais
corrompidos que sejam em seu comportamento, resta em seu íntimo um núcleo vital
que nunca emudece e que constitui o pesadelo de tantos indivíduos, tantos
grêmios ocupados em reduzi-lo ao silêncio. O escritor, na sociedade, representa
essa voz, esse rumor; é uma força espiritual, a consciência de um momento, a
secreta lucidez de um povo. Não lhe falta certa semelhança com aquele membro
das comunidades coreanas incumbido de fabricar, em obediência a antigo costume,
o papagaio de papel contra o qual são lançadas, uma vez erguido, as imprecações
da turba.” (Cap. X, p. 216)
“A consciência de um povo é de todos e os seus livros
realizados com severidade, a soma de gêneros e de tendências, de obras, uma
literatura, a sua literatura – e mesmo, em certa medida, as outras literaturas.
No levantamento de contas do escritor, portanto, não será determinante a
ressonância, a difusão e penetração de seus escritos, a influência de seus
livros sobre os acontecimentos. Sua influência real, e talvez a maior, quem
sabe a única, a de que deve orgulhar-se, reside em existir, em assumir
decididamente o seu destino.” (Cap. X, p. 218)
“Todos os estímulos, de resto, serão próprios a
desorientá-lo: conhecerá a incerteza em relação à linguagem, será assaltado
pelo desânimo e duvidará de si mesmo; ver-se-á indagando, mesmo se não lhe
sobrevierem vicissitudes de ordem material, até que ponto sacrificou ou está
sacrificando em vão a sua vida e as dos que, de um modo ou de outro, dependem
dele; perpétuo é seu combate contra a amargura de sempre oferecer ao próximo o que
em si tem de melhor e sempre – ou quase sempre – ser avaliado pelo que menos
lhe significa.” (Cap. X, p. 222)
[1] BEAUVOIR. S. de. Que peut la littérature? Debate promovido pela União dos
Estudantes Comunistas Franceses em 1964. Tomaram parte, além de S. de Beauvoir, Yves Berger, Jean-Pierre Faye, Jean
Richardou, Jean-Paul Sartre e Jorge Semprun (Col. L’Inedit 10/18, Paris, 1955).
[2] GIDE, A. Entrevistas Imaginárias. Buenos Aires, Emecê Editores S.A., 1944,
p. 48, trad. esp.
[3]
EINSTEIN, A. “Discurso a Cientistas Italianos”. In: O Intelectual e a Política. Lisboa, Ed. Presença, 1964, org. de
Romeu de Melo, p. 355.
[4]
CHQUILOFF, Miguel Theodorovitch. “Guimarães Rosa, Estudante de Russo.” In: Supl. Lit. de Minas Gerais. 20-4-1968.

