Foi ainda em 2008, quando o filme talvez estivesse em cartaz, que um ex-vizinho e amigo da adolescência me recomendou “Na Natureza Selvagem” (Into The Wild), enfatizando mais o quanto eu provavelmente me identificaria do que as prováveis virtudes da obra.
Quando colegas de sala no colégio, íamos ao cinema de vez em quando e vimos surgir os formatos compactos, a começar pelo DivX , que começou a aproximar os longa-metragens das músicas em MP3. Ele se interessava por tudo e tinha que aturar minha rabugice quanto às comédias de caretas e às sitcoms - provavelmente a partir dessas divergências intuiu que eu apreciaria o tom grave de Into The Wild.
Meu amigo estava mais certo do que calculava: até hoje, é meu filme preferido, o único que revejo periodicamente. A obra, aliás, me provocou uma pequena obsessão e me levou a ler o livro em que se baseou e o testemunho de sua irmã sobre a história de Chris McCandless. É um raro caso, porém, em que se subverteu o lugar-comum “o livro é muito melhor do que o filme”: Sean Penn e o próprio Jon Krakauer, autor do texto homônimo, trabalharam juntos no roteiro que alivia a ênfase documental da fonte jornalística para ilustrar a dimensão humana da história trágica do rapaz que, em sua jornada, rebatizou-se Alexander Supertramp.
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| Coisas do caminho |
Se tivesse nascido cem ou duzentos anos antes, Christopher McCandless teria-se feito ao mar, como tantos jovens desajustados ou inquietos de antigamente, ou talvez tivesse arriscado a experiência de algum monastério longínquo. Foi mais longe: bebendo do texto transcendental de gente como Henry David Thoreau, Jack London e Liev Tolstói, bandeou-se para um ascetismo extremo, em contato com o mundo natural em uma de suas manifestações mais inóspitas - o Alasca rural era o seu destino último.
Na Natureza Selvagem não tem guinadas de roteiro nem um final reconfortante, de modo que a audiência casual talvez não se impressione muito para além das paisagens e das boas atuações, com destaque para o excelente Emile Hirsch no papel principal. A inadequação, o desconforto, a intransigência do rapaz com relação à sociedade industrial-consumista reverberam em sua voz, expressão e gestual.
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| "L'homme de Java", mais um que escapuliu pelo mar |
O filme é também provavelmente o único que eu conheço com mais admiradores de sua trilha sonora do que dos demais elementos da obra. A amizade entre Sean Penn e Eddie Vedder provavelmente está na origem do disco espontâneo, às vezes improvisado e às vezes épico, e sempre potente, que eu e outros nunca paramos de escutar todos esses anos. Recordo-me de sentir calafrios, anos depois do filme, ao ler “Tuolumne” em placas de estrada a caminho do Parque Yosemite, ao mesmo tempo em que me lembrava do solo de guitarra pungente. A certa altura daquele mesmo passeio, comentei com um colega de acampamento de Hong Kong que as paragens me faziam pensar no filme e ele, sem deixar de perceber o tom levemente nostálgico que eu adotava, prontamente confirmou: “a trilha sonora é ótima.”
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| 👍🏻 |
Alguns anos antes do filme, ainda universitário, ensaiei uma prosa mais comprida em uma espécie de novela cujo protagonista, por fim, refugia-se num casebre que guarnece uma plantação de abacaxis. É um material de pouquíssimo valor estético mas que preservou fragmentos da convicção irrequieta, do desconforto de alguém prestes a se formar e com pouca disposição de inserir-se entre os profissionais do futuro. Quando releio Maresia, o relativo constrangimento pela qualidade da narrativa é superado pela admiração pelo ímpeto eternizado ali e pela especulação sobre quanto daquela veemência e daquela inquietude estão latentes e quanto se perdeu para sempre.
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| 👀 |
Se retorno ao proto-livro ou ao filme de vez em quando, porém, pode ser para não perder de vista aquele furor dos vinte e poucos anos, para soprar um braseiro que ainda não se apagou inteiramente. Em Na Natureza Selvagem, os roteiristas convertem a riqueza de dados de suas fontes num retrato sensível, pintado principalmente pelas anotações do próprio Supertramp mas também pelas impressões da irmã - justificadíssima narradora do ponto de vista do lar de onde ele escapou - e ainda pelas relações que ele constrói ao longo do caminho até a jornada final.
Wayne Westerberg, que emprega Alex durante algumas temporadas, por exemplo, é também um desajustado e um questionador à sua maneira. O fato de ser mais velho e calejado, porém, é explorado de modo a evidenciar outras facetas do protagonista. A tenra aproximação da guitarrista Tracy Tatro, um pouco mais jovem do que ele, seguida da separação brusca e inesitante funcionam bem para retratar a oscilação do viajante entre sua prolongada obsessão pela provação selvática e suas concessões espontâneas a afetos mais suaves.
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| 🤩 |
O itinerário do rapaz pela vida, aliás, faz pensar novamente em Sidarta: ele não apenas terminou seus estudos mas foi um aluno brilhante. Não negou a própria curiosidade nem a novidade, sabia programar e poderia ter feito carreira na NASA, se assim quisesse. Não comprou um Cadillac para exibir aos vizinhos, foi além, deu-se conta de que não precisava de mais do que seu sedãzinho amarelo e, a certa altura, passou também além dele, abandonado junto de um amontoado de dólares em chamas. Ele não negou a vida, ele a esgotou, passou em disparada por artha e dharma para enfiar-se de cabeça no moksha. Ainda muito jovem, tornou-se, como Louis Vigée, “rico de bens dos quais sei prescindir”.
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| 💸 |
Mais comoventes ainda são duas outras interações de Alexander Supertramp: a primeira com o casal hippie Jan e Rainey, na qual os realizadores, sem recorrer a narrações nem recursos mais óbvios, tocam o tema da relação do rapaz com a própria família, instauram um dilema central do longa - telefonar ou não para os pais? - e proporcionam cenas preciosas da vida de viajante, da liberdade do caminho e de contato com vastos ambientes naturais.
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Outra se dá com o octogenário Ron, alguém na outra extremidade do itinerário vital, dilacerado por eventos passados mas tratando de cicatrizar-se com técnicas muito diferentes, entre as quais a proposta de adotar o rapaz cujo arrebatamento letrado o acabou por fascinar. Eles acertam, de novo, ao retratar um Alex capaz de profundezas de ternura mas, no quadro geral, fustigado pela obstinação intransponível.
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| 🧓🏻 |
Provavelmente a experiência de tela de Sean Penn - que, aparentemente, não dirigiu outros longa-metragens desde então - contribuiu para a mise-en-scène profundamente comovente empregada nesses encontros e desencontros, a exemplo da lacrimogênea despedida entre Ron e Alex. É de se louvar a versatilidade do talento de Jon Krakauer, que concedeu a trechos fictícios como o marcante encontro do protagonista com o casal sueco na curva do rio em detrimento de um (teórico) rigor jornalístico.
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| 🌭 |
Confesso um certo pesar por notar que o que a maioria das pessoas carrega dessa história é a provável citação intermediada e adaptada de Dr. Jivago: “a felicidade só é verdadeira quando compartilhada”, garatujada nos últimos dias de vida do protagonista (acometido de alucinações intoxicadas) e negativa de boa parte dos questionamentos por que ele passou em vida.
Ainda poderia encher páginas sobre reverberações desse filme sobre minha maneira de sentir e pensar. O poderoso disco do Eddie Vedder, por exemplo, não é a única herança musical da obra: a partir de “Doing The Wrong Thing”, trilha da cena em que Tracy e Alex se despedem, é responsável pela descoberta da obra delicada de Kaki King. As cenas quase íntimas na Slab City são ao mesmo tempo ostentações do poder do deslocamento e vestígios da magia idiossincrática da Califórnia.
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| 💕 |
Into The Wild é provavelmente uma lição recorrente, um pequeno universo úmido de maresia ao qual ainda vou precisar retornar muitas vezes para não me esquecer de que a estrada é comprida, de que o adulto "bem sucedido" não é o destino humano e de que o calor dos anos bonitos - seja num abacaxizal tórrido ou em confins polares - pode ser reaceso, enquanto houver um tição incandescente que seja.
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| Maresia? |

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Lindo! Amei, de paixão. Apesar de ser uma analise, me comoveu e pegou no coração.
ResponderExcluirEste filme é
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