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Fins de histórias

Quando eu ainda sofria meus primeiros meses de vida, Blade Runner chegou aos cinemas e, ao que parece, reservou imediatamente seu espaço no imaginário popular. Alguns anos depois, Top Gun, com sua trilha sonora marcante e imagens de caças em combate, provocaria filas de espera nas locadoras de VHS. 

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Tínhamos em casa o LP, de capa azul de papelão, da trilha de Top Gun ("Ases Indomáveis") e os quadrinhos infantis parodiavam Blade Runner, enquanto Eduardo e Mônica era ainda para mim algo um pouco distante, que alguns colegas mais velhos cantarolavam aos pedaços quando não hipnotizados pelas façanhas dos Guns 'n' Roses. 

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Trinta e cinco anos depois, Blade Runner 2049 atreveu-se a reevocar o filme original, de forma rigorosamente respeitosa – se não elogiosa – sem cair na armadilha tentadora de replicar o futurismo hiperurbano e oriental com os novos recursos visuais disponíveis. No filme de 2017, opta-se por uma desolação desértica, hipersolar e ocre onde se desenvolve uma história nova, ainda que com acenos ao passado construído em 1982, e se preserva a sutileza narrativa da franquia, sem explicações excessivas que subestimem o expectador. Cada um à sua maneira e em seu tempo, os dois Blade Runners são joias igualmente brilhantes do cinema de ficção científica.  

Top Gun: Maverick, de 2022, vai por um caminho um pouco diferente. Seu roteiro retoma os personagens e os dramas do filme anterior de onde pararam e injeta camadas históricas entre as duas narrativas. O contorno geral é, ao mesmo tempo, prolongar o fio de 1986 e homenagear a obra que inaugurou a franquia com sobreposições, coincidências e até alguns diálogos inteligentemente repetidos.  

Se Blade Runner 2049 provavelmente para de pé sozinho, tenho dúvidas de que Top Gun: Maverick seria metade do barato que é se eu não tivesse assistido à referência de 1986 e testemunhado o impacto de sua trilha sonora, sua estética de motocicletas, jaquetas rebuscadas e óculos escuros sobre a "cultura" da época. Assim também, Eduardo e Mônica, filme de 2022, apesar do roteiro sem pontas soltas, das atuações convincentes de Alice Braga e Otávio Augusto e da bonita fotografia da Capital Federal, dificilmente seria tão encantador se não partisse dos versos da impecável faixa do Legião Urbana, publicada no fatídico 1986.

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Para muitos filmes, assim como hoje acontece com os seriados, a oportunidade de fazer uma continuação e explorar o “mercado” criado pelo primeiro sucesso é ponderada logo que saem as estatísticas das bilheterias. Perguntei-me então o que poderia motivar os autores desses filmes a resgatar histórias de décadas atrás – provavelmente já cristalizadas no espírito do público original e raramente tão interessantes para as pessoas de agora – em lugar de concentrar seus óbvios talentos em algo novo, possivelmente marcante para outras gerações. Por que estariam inconformados com o ponto final?  

Os relacionamentos românticos, exemplificados por Eduardo e Mônica, são fornecedores de problemas, impasses e dilemas em profusão inversamente proporcional à idade dos envolvidos. Mais tarde, talvez na idade dessa canção, os envolvidos provavelmente chegarão a uma síntese que lembra a de Albert Camus: “só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.” Em enlaces afetivos, a maioria dos dramas também se afunila para uma decisão: prosseguir com o vínculo ou encerrá-lo.  

Se, como divulgaram Yuval Harari e outros, boa parte da nossa cultura e cosmovisão são narrativas, os relacionamentos podem ser vistos como sucessões de fatos às quais atribuímos sentido e continuidade, assim como as sequências de narrativas audiovisuais e musicais. Qualquer sequência de eventos que definimos como relevantes, toda cronologia de fatos delimitados que escolhermos pode ser recortada como história.  

E algumas dessas histórias se adensam a ponto de desenvolver força gravitacional: os tristes meses da pandemia se consolidaram em minha recordação como utopia dificilmente superável. Tive depois que tomar a decisão deliberada de me desvencilhar dessa fábula e deixar que o tempo, o solvente universal, desse conta da nostalgia, assim como dá cabo de tudo. 

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Um dia, porém, pode ser que as circunstâncias tragam a mim e ao mundo a um estado parecido, e que aqueles meses idílicos voltem à tona, sob outra luz, como uma escavação que desvela uma cidade formidável de milênios atrás. Maverick é aliás um personagem muito mais interessante em 2022 justamente porque acumulou mais façanhas e histórias, porque o vemos agora em perspectiva “tridimensional” e a narrativa de 1986 passa a ser parte de um todo maior, mais complicado e rico.

Apesar de nunca terem sido soterradas, estrelas da música de décadas atrás deram de novo o ar da graça  esses dias no Rio de Janeiro, com resultados variados. O próprio fato de juntarem enormes plateias, porém, já indica que muitos nunca terminam suas relações com a música da adolescência (os coroas com camisas pretas de bandas dos anos 60 e 70 são o exemplo clássico), ou ao menos gostam da ideia de reabrir caixas de recordações que, abandonadas à ação do tempo, teriam permanecido dormentes como as cidades da antiguidade.

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Eu também, ouvindo faixas do punk dos anos 90, me dei conta de que poderia muito bem nunca ter encerrado aquele inquérito: o ruído ainda é razoavelmente empolgante e há algumas letras até interessantes. Para mim é fácil decidir, contudo, que teria sido péssimo negócio não explorar tudo o que escutei desde a adolescência, talvez por efeito de uma ética do futurismo aprendida de Henry Miller:  

O mundo fantasma é o mundo que não foi completamente conquistado. É o mundo do passado, nunca o do futuro. Avançar agarrado ao passado é como arrastar uma corrente e uma bola de ferro. O prisioneiro não é aquele que cometeu um crime, mas sim o que se agarra ao seu crime e não deixa de o reviver. Somos todos culpados de um crime, do grande crime de não viver a vida na sua totalidade.

Apenas um capricho idiossincrático, uma contingência, como diriam alguns filósofos, que poderia da mesma maneira apontar na direção oposta. Assim como Eduardo e Mônica não fizeram “a escolha certa” ao persistir no improvável relacionamento, apenas fizeram a escolha de não rompê-lo. Maverick escolheu muitas vezes interromper os contatos com a Penny Benjamin e, um belo dia, resolveu prolongar aquela história. 

O que faz pensar em outra passagem do próprio H. Miller, sobre a possibilidade palpável de seguir uma vida completamente distinta, em que parece denunciar a bobagem dos destinos anunciados ao estilo “era para ser assim” e “tudo acontece por uma razão”: 

Mas se eu tivesse fugido com Una Gifford nessa altura, com a idade de quinze anos, se tivesse me casado e tido dez filhos com ela, teria sido certo, perfeitamente certo. Que importava se me tivesse tornado uma pessoa absolutamente diferente (...)?

Una Gifford, Penny Benjamin

Pode ser que, para permitir que o tempo dissolva a bola na corrente das experiências passadas, seja preciso substituir os crimes do passado por proezas no presente, como os velhos telefones celulares que, quando detectavam a memória cheia, apagavam uma mensagem das mais antigas para abrir espaço a cada nova que chegava. 

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Pode ser que o que cabe de liberdade a cada um é escolher em que ponto encerrar os arcos que compõem a sua narrativa geral, seja optando por não assistir a outras temporadas de um seriado que dá sinais de esgotamento, lançando-se a eventos que vão forçar a renovação da gaveta de mensagens ou, décadas depois, iluminar com outras cores alguma galeria do passado.

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