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Mostrando postagens de 2024

Preto n(ã)o branco

Angola, Congo, Benguela Monjolo, Cabinda, Mina Quiloa, Rebolo   Aqui onde estão os homens Dum lado cana de açúcar Do outro lado o cafezal Ao centro senhores sentados Vendo a colheita do algodão branco Sendo colhidos por mãos negras (...) Eu quero ver Eu quero ver Quando Zumbi chegar O que vai acontecer   ( Zumbi , Jorge Benjor)   Este ano celebramos (ou pelo menos folgamos) o primeiro Dia Nacional da Consciência Negra. Controverso como outras datas desse tipo, inclusive entre os negros, o feriado serviu de qualquer maneira para trazer à tona artigos e discussões sobre personagens importantes da história do Brasil.   ✊🏿   Uma é requentada de tempos em tempos: o teórico “embranquecimento” de Machado de Assis. Ainda que às vezes se mencione como o país funcionava na época e o racismo pseudocientífico do século dezenove, geralmente é destacado o silêncio do autor e os apuros de pessoas próximas sobre a questão. A sugestão é sempre a de que ele teria feito livre opç...

Modalidade: desfrute

Antes de sair e voar, surfar, escalar, pular, aplicar-se de alguma maneira no risco do espaço, na graça pura do corpo, vocês não sabem. Não têm o direito de falar. São escravos das suas ideias e das suas hierarquias e assim não conseguem enxergar que não há objetivo mais elevado do que este, o propósito último da existência, do próprio cosmo: a brincadeira livre de  voar. (Kim Stanley Robinson, Blue Mars) Numa de suas conhecidas palestras, Ariano Suassuna relatou o estranhamento ao ouvir alguém explicar, em outro evento, que “o teatro surgiu na Grécia”. No tom irresistível de suas melhores tiradas, comentou “ora, o teatro grego surgiu na Grécia, sim!” A máxima de que “a democracia surgiu na Grécia” poderia também ser aperfeiçoada pelo adjetivo gentílico se ouvida por algum antigo hindu, iroquois ou tupi no sentido de poder exercido a partir da escolha popular. Já outra ideia grega, a das olimpíadas, tomou recentemente uma dimensão tão universal e mais ampla do que as competições i...

Robe: urubu não come alpiste

Às vezes me pego pensando na motivação das pessoas que passam muito tempo fazendo a mesma coisa. Um diretor de multinacional que recebe dezenas de milhões por ano não hesitaria em se aposentar depois de uns poucos anos, é de se supor. Talvez ele, assim como o gerente modesto e longevo, tenham fundido sua identidade com o trabalho e já nem parem para pensar na vida além da “firma”. Talvez os Rolling Stones tenham um incentivo econômico que ainda funcione para levar octogenários a turnês intermináveis, mesmo após a anunciada morte do rock. Ou talvez sejam tão consagrados que são movidos pela bajulação incondicional, vai ver como o Paul McCartney, que poderia estar só nadando em glória e dinheiro há cinquenta anos.  💿 Uns dias atrás, esbarrei em “Desarraigo”, primeira faixa de “Material defectuoso”, disco lançado em 2011, anos depois do meu contato com o grupo Extremoduro. Os algoritmos me trouxeram a música porque, apesar da voz esganiçada e das letras grosseiras, de tempos em tempo...

Tecnostalgia: telejornal

No ano 2000, quando ainda assistíamos à TV a cabo, Roberto Drummond escreveu, numa das revistas que divulgavam a programação entre os assinantes, uma crônica sobre Luciana Ávila, apresentadora da Globo News. Já não me recordo do texto (que não encontrei online) além de que ele elogiava a aparência da moça. E que a locução dela tornava notícias graves mais palatáveis ou pieguice equivalente. 🤩 As questões femininas ainda não eram tão debatidas na época mas, embora jovem, achei o texto bobo, típica tirada de velho babão. Mais jovem do que o Roberto, sou porém velho o suficiente para ter lido a revista da TV a cabo e dividir com ele hábitos daquela época, como assistir ao noticiário pela televisão. É a partir desse hábito que consigo entender em parte porque o autor pagou mais esse mico: a atenção que direcionamos aos locutores que anunciam os últimos desdobramentos é de um tipo específico, que não se confunde com àquela dispensada a um colega de reunião, um professor, um interlocutor ou...

O homem desceu do ônibus

Nunca me interessei muito por especulações teóricas sobre a literatura, mas às vezes me pego pensando se é um bom investimento de tempo e esforço esmerilar as frases que traduzem as cenas mais simples. Como guardo recordações impressionistas do que leio, suspeito que reescrevê-las para além do que seja claro e não desanime o leitor seria vaidade flaubertiana. Dificilmente me esqueceria da passagem de O Idiota em que o Príncipe Míchkin tem uma crise epiléptica numa escadaria. Não me lembro de nenhuma sentença específica daquele livro interminável (interminado), embora guarde, muitos anos depois, a admiração pela descrição completa e sutil, extraída de experiência própria do autor, das sensações contraditórias e enevoadas que antecedem o episódio, culminam num bem-estar agudo e insuperável e cessam com o desmaio. Por outro lado, ao descrever a algum desavisado como se utiliza uma escada em Histórias de cronópios e de famas, é de se supor que Cortázar tenha se divertido montando e aprimo...

Neotropicalismo

Foi há muitos anos, no colégio, que ouvi falar do nacionalismo para além dos estados-nações, a exemplo do pan-eslavismo russo e do teutonismo alemão. Pareciam coisas antigas, muito relacionadas à confusão entre os países europeus durante a segunda onda colonial.  ♔ Mais recentemente, a ideia de “mundo russo” tem soado como um pan-eslavismo reeditado, com as piores intenções possíveis e consequências prolongadas. Um outro legado dessas bobagens, porém, foi inteiramente absorvido mundo afora desde aquela época: o chamado "panlatinismo" deu na invenção da “América Latina” por Michel Chevalier (ou por José María Torres Caicedo ). Seja um ou outro o pioneiro no seu uso, o termo é de difusão francesa por conveniência imperial . A autoproclamação da França como ponta-de-lança cultural da “latinidade”, aliás, provavelmente causaria certa estranheza a italianos e ibéricos. Uma invenção de enorme sucesso, diga-se de passagem, adotada espontaneamente do México à Patagônia e usada até c...

O tubo e as artes suaves

Transar bem todas as ondas a Papai do Céu pertence, fazer as luas redondas ou me nascer paranaense. A nós, gente, só foi dada essa maldita capacidade, transformar amor em nada. (Paulo Leminski) Só recentemente descobri que os jiujiteiros (praticantes do jíu-jítsu) se referem à sua (recente?) modalidade como “arte suave”, descrição que sempre ouvi associada ao judô, clássica atividade dos meninos em formação (paralela ao balé das meninas), sobretudo na região onde cresci. Fui pesquisar para saber, meio decepcionado, que o judô é que é invenção bastante recente, entabulada por Jigorō Kanō, mestre que trabalhou para converter o jūjutsu - esse sim o conjunto original de técnicas chamado de arte sutil - em algo menos mortífero e passível de ser ensinado às crianças em 1882. Duke Por essa época, não tão longe dali, o arquipélago do Hawai’i completava um século de unificação sob o Reino Havaiano ( Ke Aupuni Hawaiʻi ), crescentemente cobiçado pelos donos da Terra no século XIX e perigosamente...